Artigo Redigido por: Lourenço Pereira
Ainda nem foi dado o apito inicial para o Mundial, mas o Catar já anda a distribuir cartões vermelhos.
O Campeonato do Mundo de Futebol da FIFA realiza-se este ano, extraordinariamente, entre os dias 20 de novembro e 18 de dezembro. A calendarização para este torneio prende-se com as temperaturas elevadas que o país regista durante o verão, frequentemente ultrapassando os 40ºC. O torneio tem por tradição realizar-se entre os meses de junho e julho, altura pela qual os campeonatos nacionais e torneiros de clubes na Europa já se encontram finalizados, dando uma maior oportunidade para organizar a época de estágio.
E porquê a Europa? É claro que um pouco por todo o mundo, as dinâmicas de clube estão a ser quebradas, mas no velho continente, o futebol é desporto rei em muitos países, disputando-se os maiores campeonatos e torneios de clubes do mundo. Deste modo, é evidente que os principais clubes queiram apostar em formações de topo, contratando os melhores do mundo. Estes jogadores, pelas suas capacidades, figuram também nas respetivas seleções nacionais, pelo que terão que se deslocar para os seus países de origem para se prepararem para o Mundial.
As datas do certame obrigam, assim, a uma pausa em muitos campeonatos e alteração no calendário das grandes competições como a UEFA Champions League. Esta pausa, traduz-se num mês onde não se podem disputar jogos, assim sendo, as organizações dos torneios têm que apertar mais as datas entre os mesmos, colocando os jogadores sob uma maior pressão física e mental.
Contudo, e colocando o nosso eurocentrismo de lado, as datas do Mundial, que já foram bastante contestadas, são um dos menores problemas deste torneiro, que começaram logo com a escolha do país para sede do evento.
O Catar conquistou o direito de organizar o próximo Campeonato do Mundo de Futebol em 2010. Após a apresentação da candidatura para sediar a prova, o Catar venceu a votação do Congresso da FIFA, frente a Japão, Austrália, Coreia do Sul e Estados Unidos da América. A escolha deste país, sem grande tradição futebolística, tem levantado algumas polémicas desde então.
De acordo com uma investigação do FBI, tanto o Catar como a Rússia, último país a sediar o certame, em 2018, aliciaram monetariamente vários membros da FIFA com vista ao objetivo de sediar o Campeonato do Mundo. Esta investigação veio a servir de base para uma acusação formal da justiça norte-americana contra vários dirigentes da Federação Internacional de Futebol Associado (FIFA).
Por sua vez, o jornal The Sunday Times que em 2014 também havia lançado uma investigação sobre subornos por parte do Catar, afirma, em 2018, que este país investiu numa campanha com a finalidade de denegrir outros dos concorrentes a sediar o torneio, nomeadamente, Austrália e EUA. À semelhança das acusações de suborno, o país negou novamente.
Outro aspeto alvo de debate são os estádios, ou melhor, a construção dos mesmos. As 64 partidas deste Mundial serão disputadas em oito estádios com uma arquitetura moderna e ao mesmo tempo a condizer com a identidade cultural do Catar. Sete das infraestruturas foram construídas de raiz ao longo da última década com o propósito de albergar o evento. No fim da competição, os estádios irão sofrer remodelações ou ser desmontados, sendo várias dos componentes, como os assentos, doados a outros países.
Todavia, há uma realidade sombria para além dos holofotes e desta aparente “caridade” pós-mundial. Para a construção destes estádios, foram contratados mais de 30 000 trabalhadores, muitos deles vindos do Paquistão, Nepal, Índia, Sri Lanka e Bangladesh. Com estádios terminados e já testados, lamentam-se hoje mais de 6700 mortes – grande parte delas não justificadas – devido às severas condições a que estes trabalhadores foram sujeitos.
O governo catariano não se mostrou surpreendido com os números, porém outras organizações como o conselho da Europa, a Amnistia Internacional ou a própria FIFA estão preocupadas com o elevado volume de óbitos. No caso da FIFA, a organização pretende criar um fundo de apoio aos familiares dos que faleceram ao tornar este projeto uma realidade. Ainda assim, a organização considerou também que o número não é tão elevado comparando com outros grandes empreendimentos.
Outras preocupações associadas a este país, dizem respeito a grupos mais vulneráveis. Com efeito, as mulheres veem diariamente os seus direitos negados neste país. O Catar é um Estado muito conservador, e bastante retrógrado no que toca a muitas liberdades individuais. As mulheres são obrigadas a assumir um papel de submissão perante os homens, necessitando da autorização do seu “responsável” masculino para exercer direitos que nós europeus nem contestamos, nomeadamente contrair matrimónio. No que concerne ao divórcio, a legislação não facilita, impedindo, em caso da concretização do mesmo, a custódia dos filhos.
Outra matéria de maior controvérsia, e que recentemente ganhou ainda mais relevância, são os direitos (ou falta de direitos) da comunidade LGBT+. Já desde há algum tempo que a presença de adeptos LGBT+ no Catar tem sido posta em causa do ponto de vista da segurança, uma vez que a homossexualidade é interdita no país e pode dar até sete anos de cadeia.
Josh Cavallo, homossexual e jogador de futebol australiano, revelou há alguns meses que não se sentia seguro em defender as cores da sua bandeira no Catar, uma vez que relações entre pessoas do mesmo sexo não são toleradas. O jogador acabou por não ser convocado, mas fez a mensagem chegar a todo o mundo.
O Catar já havia afirmado que toda a gente seria bem-vinda, no entanto as demonstrações de afeto em público, independentemente da orientação sexual dos adeptos, não seriam bem vistas. Mais recentemente, Khalid Salman, embaixador do Campeonato do Mundo 2022 considerou a homossexualidade uma «doença mental». Isto dá que pensar: será que são todos mesmo bem-vindos?
O Catar tem vindo a receber pressão de várias organizações, direta ou indiretamente, para a eliminação progressiva destas violações dos direitos humanos, mas nada parece alterar-se. Quanto ao período do Mundial, não se sabe o que podemos esperar, apenas que as tradições e religião irão continuar como um dos principais pilares do país. No entanto, com tantas questões levantadas, será difícil ao Catar esconder os seus podres com o luxo que o país ostenta.
No que diz respeito à economia, os gastos do Catar com o certame rondam os 220 mil milhões dólares norte-americanos. O país acredita o evento deverá devolver 20 mil milhões de dólares à economia do país, sobretudo nos setores do turismo e construção. No entanto, o Catar espera que todo o investimento feito ao longo dos últimos anos, traga retorno ao longo dos próximos vinte anos. Outro dos objetivos do país com este grande empreendimento passa por captar a atenção de grandes empresas. Para já, e numa altura em que várias empresas e instituições se mostram cada vez mais preocupadas com questões sociais, a estratégia do Catar não parece surtir efeito. É o caso da Hummel, patrocinadora da seleção dinamarquesa, que apresentou um dos equipamentos da equipa em tons de preto, um símbolo de homenagem aos que morreram na construção do sonho catariano.
É certo que este Campeonato do Mundo, não é, nem será, apenas mais um torneio de futebol. Com a organização deste Mundial, o Catar quis abrir-se ao mundo, mostrar a sua identidade, porém, não conseguiu ofuscar os problemas latentes no país. O mundo está ciente das restrições às liberdades individuais, os alegados casos de corrupção e do elevado número de pessoas que perderam a vida a tornar o Catar 2022 uma realidade. Face a estas contrariedades, falta saber se as organizações competentes irão tomar uma posição e atuar, ou atenuar a relevância destes problemas assim que a bola começar a rolar. O pontapé de saída do torneio foi agendado para dia 20 de novembro, com o Catar x Equador, por volta das 16:00 (hora de Lisboa).
Referências Bibliográficas:
Empresas do Catar esperam tirar partido do mundial de futebol para crescer à escala global
Catar estima que receber o Mundial de 2022 terá impacto económico de 20 mil milhões de dólares
«Todos são bem-vindos ao Catar, mas a religião e a cultura do país não mudarão»
Dívidas e miséria. A realidade dos trabalhadores migrantes no Catar
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Construção dos oito estádios no Catar envolta em críticas e polémicas
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The Business of the Fifa World Cup
Qatar 2022: How will football squeeze in a World Cup in November-December?
Britannica: World CupFIFA World Cup Qatar 2022: Solutions to the Physical Fitness Challenge
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