Resumo
No artigo que se segue, será realizada uma análise aos mais recentes eventos em território europeu, eventos esses que vieram a alterar a dinâmica do atual Sistema Internacional, assim como agitar as bases do Direito Internacional, que se vêm frequentemente trespassadas. Com a atual conjuntura internacional que se impõe, revela ser de grande prioridade refletir sobre o passado histórico, ou melhor, sobre o tempo tríbio da questão. Isto é, como as consequências do passado exercem influência no presente, assim como o presente tem o poder de definir o futuro. Neste contexto, a situação decorrente na Ucrânia detém a capacidade de apontar um possível surgimento de uma nova ordem internacional. A questão é se a mesma transpõe um obstáculo à Democracia, assim como à sua estabilidade a nível internacional.
Palavras-Chave: Democracia, Ucrânia, Relações Internacionais, Rússia, Guerra Fria
Introdução
Os acontecimentos recentes que têm assolado a Europa estão sujeitos a diversas interpretações no âmbito das Relações Internacionais (RI). A guerra despoletada na Ucrânia é um desses acontecimentos, tendo sido, no entanto, já antecipada por diversos nomes reconhecidos no campo das RI, sendo alguns deles Henry Kissinger, John Mearsheimer ou Chomsky.
Esta guerra veio fragilizar as entidades democráticas no país, tal como tudo aquilo que foi conquistado, relativamente ao nível dos Direitos Humanos, sendo o território ucraniano, neste momento, palco de atrocidades como violações sexuais, tortura, força bruta e discriminação de género e racial, sendo claras infrações ao estabelecido na Carta das Nações Unidas. Perante este cenário, vemo-nos obrigados a questionar: estará a democracia a conhecer o fim do seu domínio na ordem internacional?
O que é certo é que o enfraquecimento da democracia não se pode considerar como algo recente, visto que cada vez mais se assiste ao ressurgimento de correntes populistas e autoritárias e à sua implementação em regimes outrora democráticos, como se verificou na eleição vitoriosa da administração Trump nos Estados Unidos da América (EUA), em 2016, a título de exemplo, ou até na grande expressão eleitoral que o partido ultraconservador de Marine Le Pen, o Rassemblement National, obteve nas mais recentes eleições francesas.
Já a situação na Ucrânia foi desencadeada pelo antigo desejo de Vladimir Putin, atual presidente russo, de reunir aquilo que outrora se perdeu, a glória da velha União Soviética. Face a este desejo, encontrou na ofensiva militar massiva em território ucraniano a solução para este desejo, que perdura desde o fim da Guerra Fria, aumentando com a consequente expansão do poder da NATO na Europa de Leste, interferindo na área de influência soviética, trazendo descontentamento e apreensão a Moscovo. De facto, a Ucrânia, que faz fronteira com a Rússia, tem, desde 2008, um compromisso com a NATO para uma possível adesão, o que fez tocar os alarmes russos, reconhecendo aí uma oportunidade desta instituição internacional atacar os valores soviéticos e de implementar o pensamento ocidental, ao manipular a população e virando-a contra Putin, isolando-o do exterior e despindo-o do seu poder e tal não pode acontecer, segundo a perspetiva do mesmo.
O advento da Democracia numa Ordem Internacional dividida
Os eventos que tomaram lugar no decorrer da Segunda Guerra Mundial vieram realçar a importância da existência de um Estado que salvaguardasse os interesses e a segurança da sua população, tal como advogasse o bem-estar e a manutenção dos direitos da mesma. Teria de ser um Estado que pugnasse pela democracia, que estivesse isento de autoritarismo e arbitrariedade, de modo que a paz na ordem internacional se pudesse concretizar, e a maneira mais viável disso acontecer seria através do estabelecimento da democracia que se expandisse a todo o Sistema Internacional (SI).
No entanto, quais são as premissas necessárias para que exista democracia? Esta questão é alvo de várias tentativas de definição por diversos autores das RI, destacando-se, contudo, a definição da mesma por parte de David Beetham: “é um modo de tomada de decisões baseado em regras e políticas vinculativas ao nível coletivo e sobre as quais o povo exerce controlo, sendo o modelo mais democrático aquele onde todos os membros do coletivo efetivamente gozam dos mesmos direitos a participar diretamente naquela tomada de decisões.” Neste sentido, é imperativo referir, no âmbito do campo da teoria das Relações Internacionais, o surgimento do conceito de paz democrática, popularizada nos anos 80 por Michael Doyle que se inspirara em Kant e na sua obra “A Paz Perpétua: Um Esboço Filosófico (1795)”. Sucintamente, esta teoria trata de explicar as relações entre dois Estados democráticos e a improbabilidade de ambos ingressarem numa guerra ou em qualquer tipo de atividade que inclua qualquer recurso à violência. Esta ideia, para além de se impregnar a nível político, também se estende à dimensão psicológica dos líderes governamentais, na medida em que se torna mais fácil o diálogo com líderes de Estados democráticos, contrastando com líderes autoritários, em que a linha que separa o diálogo de uma atitude ofensiva é ténue, o que acaba por revelar instabilidade e imprevisibilidade aquando da análise das ações destes líderes.
Perante este panorama, e tendo em conta, simultaneamente o período em que estas teorias surgem, num período pós Segunda Guerra Mundial e em que se vivia a dinâmica bipolar da Guerra Fria, entende-se a razão destes conceitos despertarem um maior interesse em regiões onde a liberdade em democracia era um desejo de longa data. O Movimento dos Não Alinhados, a título de exemplo, tornou-se, neste contexto, uma mensagem de esperança aos povos que ainda se encontravam sob o jugo de regimes autoritários, sendo que os mesmos começaram a cair e começaram-se a implantar governos com suposta bandeira demoliberal.
Uma democracia pouco democrática
Adotando o exemplo da Ucrânia como presente objeto de estudo, aquando da queda do Muro de Berlim, este país, sendo apenas um inserido num conjunto de países mais avultado que se encontravam sob o jugo russo até então, seria de esperar que adotasse uma nova forma de governo que se apresentasse mais democrática. Esta possível democratização de regime iria ajustar-se, assim, ao novo padrão democrata-liberal que se instalava na nova ordem internacional pós-Guerra Fria, afastando-se das intenções autocráticas soviéticas. Já Francis Fukuyama assim o teorizava, ou seja, que após a ascensão e do domínio transitório de regimes autocráticos, os mesmos iriam submeter-se à vitória da democracia liberal alinhada com a perspetiva ocidental, que se iria expandir pelo mundo, pelo menos no campo ideológico, pelo que o domínio do liberalismo no mundo material ainda estaria por vir: “(…) that is, the end point of mankind’s ideological evolution and the universalization of Western liberal democracy as the final form of human government. (…) for the victory of liberalism has occurred primarily in the realm of ideas or consciousness and is as yet incomplete in the real or material world. But there are powerful reasons for believing that it is the ideal that will govern the material world in the long run.”
Perante este panorama, o desejo da Ucrânia em tornar-se num Estado de Direito Democrático encontrava todas as condições para ser um desejo legítimo e concebível. Verificou-se que este desejo de democracia nunca chegou a ser realizado. A verdade é que a Rússia nunca aceitou o facto da possibilidade de perder a Ucrânia (país com grande abundância de recursos e importância cultural) com o fim da Guerra Fria e deixar a mesma numa posição vulnerável, facilitando a sua entrada no campo de influência Ocidental, o que o mesmo é dizer, impedir que a Ucrânia caia nas garras dos EUA.
Para que não acontecesse, Moscovo nunca libertou verdadeiramente a Ucrânia para que esta pudesse constituir autonomamente o seu próprio governo ou estabelecer qualquer tipo de regime independente da vontade soviética. Apesar de não demonstrar diretamente a sua presença nas tomadas de decisões ucranianas, a Rússia sempre interferiu nas mesmas, sempre escondida nas sombras de uma democracia pouco democrática, isto porque lhe faltam as características essenciais a qualquer regime democrático, características essas que já se encontram supramencionadas.
Uma teimosia que lançou o caos no Sistema Internacional
A atitude que apenas transpira teimosia e nostalgia de uma glória passada que não tem já lugar no presente por parte da Rússia perturbou (com grande sucesso) a ordem do atual SI, ao ponto de causar o primeiro grande conflito no continente europeu desde a Segunda Grande Guerra.
A tensão que se acumulou na ordem internacional estabeleceu-se aquando da anexação russa da Crimeia, região que até então pertencia à Ucrânia, em 2014. Para além de ser um atentado ao Direito Internacional, esta ação conseguiu levantar as animosidades entre a Rússia, EUA e Reino Unido, algo que não acontecia desde o término da Guerra Fria. Para além deste evento, a Rússia optou por dar apoio às regiões separatistas de Donetsk e Lugansk (que juntas são mais conhecidas como Donbass), um duro golpe na soberania e integralidade do território ucraniano, seguindo-se a mais recente invasão direta à Ucrânia, em fevereiro do presente ano, resultando num conflito armado de várias frentes (sendo umas mais diretas que outras), cujo fim ainda permanece desconhecido.
Neste contexto, surgiram diversas interpretações quanto à atual guerra na Ucrânia, sendo uma delas sobre a forma como esta podia ter sido evitada, isto se o Ocidente não tivesse sido tão rápido em descartar a posição soviética na nova ordem internacional pós-Guerra Fria, relegando os interesses da ex-União Soviética para segundo plano, o que não foi a melhor atitude que, e especialmente, os EUA tomaram enquanto potência vencedora da Guerra Fria. A exclusão de que a Rússia foi alvo no dealbar da nova ordem internacional por parte dos restantes Estados foi alimentando o descontentamento russo, sendo subestimada inúmeras vezes, até que não o conseguiu esconder mais.
Aliás, Chomsky, reconhecida personalidade das RI, refere esta posição na sua entrevista à Global Policy Journal, afirmando o seguinte: “High administration officials don’t just concede that “prior to the Russian invasion of Ukraine, the United States made no effort to address one of Vladimir Putin’s most often stated top security concerns — the possibility of Ukraine’s membership into NATO.” They praise themselves for having taken this position, which may well have been a factor in impelling Putin to criminal aggression”.
Já Henry Kissinger acredita que a situação ucraniana é colocada como um problema entre o Leste e o Ocidente, na medida em que há uma disputa em relação ao lado a que a Ucrânia se deve juntar. Kissinger admite que a melhor solução para a sobrevivência e desenvolvimento ucranianos seria formar uma espécie de ponte entre estes dois lados, de modo a formar um entendimento isento de preconceito e animosidade “Far too often the Ukrainian issue is posed as a showdown: whether Ukraine joins the East or the West. But if Ukraine is to survive and thrive, it must not be either side’s outpost against the other — it should function as a bridge between them”.
Retira-se daquilo que foi aqui escrito que o busílis da questão é analisar o passado histórico que une as nações russa e ucraniana, uma vez que o mesmo se encontra inevitavelmente interligado, e não tomar uma posição precipitada consoante qualquer inclinação política. É essencial adotar uma perspetiva imparcial e diplomática se o intuito é tentar entender a dinâmica das relações internacionais, pois o próprio SI está envolto numa rede de conexões e interdependências, sendo a sua sobrevivência apenas possível se a diplomacia se tornar na palavra de ordem.
É igualmente fulcral reavaliar o poder de instituições como a Organização das Nações Unidas ou até a União Europeia, cujos papéis na redação de uma resolução eficaz relativamente à guerra na Ucrânia ficou muito aquém do esperado, corrompendo, naturalmente, a reputação e o passado de tais instituições, tal como a segurança que as mesmas são obrigadas a transparecer numa ordem internacional onde o perigo está mesmo ao virar da esquina, à espera de enviar a Democracia e o Estado de Direito para o obscurantismo político uma vez mais.
Referências Bibliográficas
(Monteiro, 2022)
(Pereira, 2007, p. 14)
(Dyachenko, O processo de consolidação democrática na Ucrânia: O papel da União Europeia, 2016, p. 118)
(Menand, 2018)
(Kirk, 2022)
(Kissinger, 2014)
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