O seguinte artigo pretende aprofundar o argumento central apresentado em “Exércitos de Potemkin: A Derrota Final da Rússia na Ucrânia”, publicado a 6 de outubro. Ao partir dos sucessivos falhanços russos a nível tático e logístico, bem como da conjuntura internacional hostil, concluiu-se que a Rússia havia cimentado a sua derrota militar na Ucrânia e que esta não possuía meios para concretizar quaisquer dos seus objetivos, sejam eles a subjugação total da Ucrânia, a mudança de regime ou mesmo a anexação parcial das regiões a sul. Um mês depois, é seguro dizer que tais conclusões se mantém. Porém, é necessário reconhecer que imaginar cenários possíveis sobre o futuro da Rússia partirá sempre de um dado grau de especulação. Não se pretende, assim, lançar previsões concretas, mas sim contribuir para um debate cada vez mais urgente. O que é possível verificar, no entanto, é que não só as forças armadas russas, mas também a posição da Rússia no sistema internacional e o seu próprio aparelho de Estado se encontram num processo de desintegração. Este processo já é de tal modo visível que levou oficiais como o general reformado norte-americano Ben Hodges a alertar em setembro para nos prepararmos “para o desaparecimento da Rússia”. Isto conduz a uma série de questões: quão danosa tem sido a invasão da Ucrânia? O que manteve o regime de pé até agora e estará isso em causa? Será realmente mais fácil imaginar o fim da Rússia do que uma Rússia democrática?
Primeiramente, constate-se o óbvio: o inverno está a chegar. O futuro da economia russa, tanto a médio como a longo prazo, será medido através de uma miríade de fatores, nomeadamente o desempenho do setor energético, a redirecção das infraestruturas da Europa para a Ásia, o acesso a alta tecnologia e o impacto das sanções impostas pelos Estados Unidos, pela União Europeia e pelo Reino Unido, entre outros. Cerca de metade do orçamento federal provém das receitas de vendas de petróleo bruto (ou crude), produtos petrolíferos e gás natural. Dados deste ano revelam que, dos 63% das exportações totais, 26% e 12% correspondem à venda de crude e gás, respetivamente. Observando estes dois, é possível verificar semelhanças tanto nos problemas que enfrentarão como em possíveis soluções. É então necessário olhar para o peso das sanções ocidentais. As mais recentes, impostas por Washington em resposta à “anexação” dos territórios ucranianos a sul, afetam quase 300 deputados russos e 14 indivíduos ligados ao setor da defesa, assim como organizações que apoiem o seu esforço de guerra. A Comissão Europeia, por sua vez, propõe expandir os limites impostos às importações e à venda de bens de alta tecnologia. O plano ocidental é, até ao início do próximo ano, substituir as importações de petróleo, gás e carvão russos. Embora o terceiro maior produtor mundial, a falta de compradores de crude obriga Moscovo a vender a preços cada vez mais baixos. Em resposta, a China e a Índia aumentaram progressivamente as suas importações desde fevereiro. As grandes companhias estatais como a Rosneft e a Lukoil sobreviverão o êxodo de parceiros internacionais, pressupõe o Financial Times, mas problemas futuros cingir-se-ão no desenvolvimento de reservatórios mais complexos e na falta de mercados para o seu produto. Por um lado, a falta de compradores de crude pode levar a que empresas chinesas não vejam razões para investir em novos projetos na Rússia. Por outro, esta redirecção para a Ásia implicará expandir a capacidade da Rússia exportar petróleo por via marítima, o que implicará custos.
O mesmo se verifica na produção de gás natural. Esta é de particular importância dado o seu potencial enquanto arma energética. Durante anos, previu-se o fecho da torneira por parte do Kremlin, tendo em conta a conhecida dependência extrema do continente europeu. O capítulo mais recente neste drama centra-se em torno da alegada sabotagem dos gasodutos Nord Stream 1 e 2. Embora sem grande impacto nos mercados, dado estarem ambos inoperacionais, este episódio alerta à possibilidade da Rússia escalar para ataques em infraestruturas civis, inclusive cabos submarinos de telecomunicações e o ciberespaço. Levante-se então a pergunta: e se Vladimir Putin já jogou o seu trunfo? É possível que seja tarde demais para ele. Desde a invasão, a percentagem de gás russo importado pela União Europeia diminuiu de 46% para apenas 9%. Mesmo depois da anexação ilegal da Crimeia e da construção de movimentos separatistas no Donbas, a Rússia ainda era olhada como um parceiro comercial de confiança por Bruxelas, mas em fevereiro essa confiança desapareceu sem esperanças de regressar em breve. Logo, a Europa viu-se obrigada a voltar-se para países como os Estados Unidos, a Argélia, a Noruega, o Catar e o Azerbaijão para (finalmente) diversificar as suas importações de gás. Ao mesmo tempo, tem-se verificado um esforço concertado pelos governos europeus em aliviar a carga fiscal dos contribuintes no que toca aos custos de eletricidade e ao aquecimento de edifícios. Jeffrey Sonnenfeld, no Financial Times, realça que os setores que mais dependem do gás natural – metais, produtos químicos, papel, entre outros – contribuem apenas 3% do valor bruto total europeu e menos de 1% da sua mão de obra. O rombo na economia europeia será, assim, muito menos grave do que o inicialmente previsto. Em agosto, o bloco europeu conseguiu atingir os 80% de preenchimento das reservas de gás – um alvo apontado para novembro – e essa percentagem subiu 14,3% desde então. Os preços do gás natural caíram 65% desde agosto e as previsões apontam para um inverno anormalmente quente. Apesar de receios a médio/longo prazo ainda persistirem, a Europa tem demonstrado que não só é capaz de resistir à chantagem da Rússia, mas que já se encontra no processo de substituir inteiramente o gás natural russo. Em julho, a consultora norueguesa Rystad Energy sublinhou que as sanções internacionais no setor energético poderia resultar numa perda de 85 mil milhões de dólares em 2022, relativos a impostos sobre o gás natural e o petróleo. A rede de gasodutos da Rússia é quase inteiramente centrada em alimentar a Europa. Observando dados de 2021, a Rússia vendeu cerca de 33 mil milhões de metros cúbicos de gás a países asiáticos, sendo dois terços desse gás liquefeito. Isto é pouco mais que um quinto do rendimento do mercado europeu, que rondava os 160 a 200 mil milhões. Semelhante à venda de petróleo, uma redirecção do gás russo a favor da Ásia seria possível, mas tal requereria um investimento massivo em novas infraestruturas inclusive terminais de gás liquefeito. Citando Daniel DePetris na Time, mesmo se Moscovo conseguir contornar as pesadas sanções internacionais e obter os necessários capital e conhecimento estrangeiro, levará aproximadamente uma década para preencher o vazio deixado pelas exportações de gás à Europa.
Com isto em mente, estarão as sanções a funcionar? Simplificando bastante, a curto prazo não, mas a médio e longo prazo sim. É possível construir um argumento de que não, com base nas altas taxas de câmbio do rublo. Josep Borrell, chefe da diplomacia da União Europeia, responde que este apenas reflete o desequilíbrio entre as exportações de gás e petróleo e o colapso pós-sanções das importações. Referindo-se à alta tecnologia, Borrell aponta que Moscovo depende largamente de produtos ocidentais e que a substituição destas importações será muito mais difícil que no setor primário, afetando não só a já mencionada indústria petrolífera, mas também a produção aeronáutica. O economista russo Oleg Vyugin defende que a situação é menos alarmista, sendo as sanções apenas 30 a 40% eficazes em afetar a economia russa. Porém, novamente é dado foco nas exportações energéticas e no desenvolvimento tecnológico, bem como nos danos que potenciais restrições a estes farão a médio e longo prazo. Citados por Phillip Inman para o Guardian, analistas como Mikhail Mamonov e Yakov Feygin apresentam um cenário negro. Mamonov em particular salienta o decréscimo da economia em 6% para 2022 prevista pelo FMI. Com base no seu modelo macroeconómico de 2014, estima que essa queda será 10%, enquanto o consumo privado diminuirá entre 10 e 15% e o investimento cairá 17%. Por sua vez, Feygin incide luz sobre o aumento dos preços dos alimentos e os primeiros sinais de escassez de bens essenciais. À medida que o cerco aperta, um relatório da Scope Ratings afirma que em 2023 o PIB russo verá uma diminuição em 8%, face dados de 2021. A agência estima que a economia russa só voltará a ver níveis pré-invasão a partir da década seguinte.
À derrota na guerra energética junta-se a traição da demografia e da geografia. O renascimento da Rússia pode ter sido a pedra basilar do regime de Vladimir Putin, mas nem os mais crentes na teoria dos “grandes homens da História” de Thomas Carlyle podem negar que certos destinos são inalteráveis, por muito forte que a vontade humana seja. Ou, pelo menos, bastante difíceis de o conseguir. Um destes destinos consiste na crise demográfica que tem assolado a Rússia desde os anos 90. Desde então a população russa, que no seu pico atingia os 149 milhões, caiu em pique até 2008, passando a contar com 143 milhões. Seguiu-se um novo crescimento, auxiliado pela anexação ilegal da Crimeia, mas a pandemia de COVID-19 trouxe o declínio de volta. A tendência mantém-se desde então, com projeções das Nações Unidas a estimar que, nos próximos 50 anos, a Federação Russa tenha no seu seio menos 50 milhões de indivíduos. O que justifica esta catástrofe demográfica? Em primeiro lugar, segundo Nicolas Eberstadt e os serviços de estatística oficiais (Goskomstat), a quebra acentuada nos nascimentos bem como o aumento subido da mortalidade. Entre 1992 e 2012, a diferença entre os mortos e os nascidos na Rússia rondou os 14 milhões. Ou seja, para cada dois nascimentos registavam-se quase três mortes, revelando um crescimento natural negativo. Eberstadt coloca em perspetiva quão calamitosos estes números são ao sublinhar que apenas outro país na segunda metade do século XX experienciou um crescimento natural negativo maior – a China maoísta durante a fome causada pelo fervor ideológico do “Grande Salto em Frente”, que vitimou aproximadamente 30 milhões de chineses.
Alexei Raksha, demógrafo independente russo, serve-se dos censos mais recentes para divulgar que nos primeiros cinco meses deste ano, a população russa caiu em cerca de 430 mil. Embora menorize o peso das perdas na guerra e a subsequente emigração, acentuada com o decreto de mobilização, aponta três grandes motivos para a situação: o contínuo decréscimo da natalidade, o desfasamento de políticas natalistas por parte do governo e, naturalmente, os receios dos russos em relação à economia e ao decorrer da guerra. As tendências descritas nos censos podem tornar o futuro demográfico da Rússia mais claro: em relação a outros países, uma grande parte das mortes afeta homens em idade ativa e, mais importante ainda, em idade para lutar. Isto deve-se principalmente à séria crise de opioides, o estigma associado à saúde mental e a subsequente elevada taxa de suicídios e, acima de tudo, a crónica e nociva relação do povo russo com o álcool. Ao mesmo tempo, como mencionado repetidamente em artigos anteriores, russos étnicos são minorias nas únicas regiões que registam taxas de crescimento natural positivas. Isto é, a menos que a imigração aumente dramaticamente, a Rússia continuará a encolher e as suas minorias étnicas terão um papel cada vez maior no seu futuro, quer o Kremlin ou as elites de Moscovo e São Petersburgo queiram, quer não.
Igualmente importante em qualquer análise sobre a Rússia é a sua posição geográfica. Rios e rios de tinta correram sobre a necessidade urgente de Moscovo aceder a portos de água quente, sendo estas vozes mais altas ainda aquando da tomada da Crimeia, mas esse é apenas uma parte do cenário completo. Tim Marshall deixa explícito no título do seu artigo para a New Statesman: a Rússia é prisioneira da geografia. Apesar de ser o maior país do mundo em extensão territorial, englobando uma área de 17 100 000 km2, os seus portos e vias marítimas a norte estão reféns do frio do Ártico, restando apenas os mares Negro e Báltico cada vez mais hostis. O recuo imperial da Rússia viu as nações a Leste da Cortina de Ferro a voluntariamente alistarem-se na aliança militar explicitamente criada para a conter. Marshall menciona duas áreas consideravelmente importantes para o pensamento estratégico tanto da NATO como da Rússia. Estas são o corredor de Suwalki, um troço de terra que liga a Polónia à Lituânia, situado entre o exclave russo de Kaliningrado e a Bielorrússia, e os chamados “portões” de Smolensk. O último consiste na área entre os rios Dniepr e Dvina, que ao longo da História serviu como ponto de partida para qualquer exército invasor vindo da Europa Central, sendo ele francês, polaco ou alemão.
Rodando o mapa da Rússia em 90 graus para a direita, Peter Zeihan demonstra como a estepe eurasiática forma a “Rússia habitada”, ou seja, a parte da Rússia em que as condições climatéricas tornam a vida humana possível, excluindo assim a tundra e taiga que formam grande parte do território siberiano. A estepe também inclui, por sua vez, a Ucrânia e a Bielorrússia. A falta de defesas naturais, salvo os Urais, faz com que a Rússia seja bastante vulnerável a uma invasão vinda de oeste. A sua expansão para leste e para sul da Eurásia serviu assim para assegurar possíveis pontos de acesso e, deste modo, aplacar os receios do núcleo imperial resultantes da sua obsessão geográfica. Ao mesmo tempo, foi alimentando os receios do Ocidente ao longo dos séculos XIX, XX e XXI, desde a teoria geopolítica do heartland de Halford Mackinder – quem controlar o heartland (a Europa de Leste e/ou a Eurásia) controla o mundo – à Guerra Fria e aos dias de hoje. Enquanto esta paranoia geográfica dominar o pensamento dos governantes russos, este país continuará hostil em relação aos seus vizinhos a Oeste e continuará refém de uma hipotética invasão da NATO que, tendo em conta a sua prestação contra a Ucrânia, não tem quaisquer chances de vencer por meios convencionais.
Partindo da mundivisão geopolítica do Kremlin, é importante definir o conceito de “mundo russo” (Russkiy Mir). Wilfried Jilge define-o como “um império de diáspora”, ou seja, uma forma de essencialismo linguístico e cultural que transcende fronteiras internacionalmente definidas e confere à Federação Russa, enquanto herdeira dos impérios czarista e soviético, um papel de protetora das populações russas que vivam no seu exterior próximo. Qualquer ataque a estas, real ou não, legitimaria uma ação por parte da Rússia, inclusive o recurso às armas. Este conceito esteve na base da ocupação da Crimeia em 2014 e atingiu a sua conclusão lógica em fevereiro deste ano. O dano que a guerra na Ucrânia causou ao soft power russo é gigantesco: a Europa parece ter desistido da ideia de considerar a Rússia como parte do seu mundo, a Ucrânia uniu-se numa luta coletiva pela sua própria sobrevivência e as antigas repúblicas soviéticas da Ásia começam a questionar o seu papel no “espaço pós-soviético”. Embora historicamente agrupadas na esfera de influência do Kremlin, estas últimas têm começado a voltar-se para a Europa, a Turquia ou a China.
É quase desnecessário explicar que quando uma potência imperial revanchista invade um dos seus vizinhos com intenções de extinguir a sua autonomia, povo e cultura, as suas outras antigas colónias deixam de a olhar como garante da sua própria segurança. Observando a história russa do século XIX, escreve Oleksandr Polanichev que o projeto colonial czarista do Cáucaso do Sul, nomeadamente a Geórgia, era bastante semelhante à visão que os países europeus oitocentistas tinham dos seus próprios impérios: uma região “exótica” que escoaria matérias-primas à metrópole em troca de produtos transformados e, sobretudo, de “civilização”. Mediante a esta região, o principal foco de tensões nos dias de hoje tem sido o exclave do Nagorno-Karabakh, colocando de um modo simples a Arménia e a Rússia de um lado e, do outro, o Azerbaijão e a Turquia. Depois da ofensiva azeri de 2020, a paz foi assegurada por um acordo que simbolizou não só o desinteresse ocidental em apoiar os defensores arménios, mas uma renovada presença militar de Moscovo nesta região. O exclave é internacionalmente reconhecido como parte do Azerbaijão, mas encontra-se desde 1991 sob o controlo da autoproclamada república arménia de Artsakh. Ou seja, não é reconhecido pela Rússia enquanto parte da Arménia. Assim, o renovar das hostilidades em setembro não conduziu à intervenção da CSTO, a aliança militar encabeçada por Moscovo e que inclui a Arménia. O vácuo securitário criado pela impotência russa levou a que Yerevan começasse a estudar as suas opções, considerando aproximações ao Irão ou aos EUA, embora o Ocidente ainda se refreie de expandir a sua influência neste país. Ao mesmo tempo, o decreto de mobilização russo levou suspeitas, no meses passados, de que este afetaria também cidadãos das repúblicas separatistas da Ossétia do Sul e da Abecásia, uma vez que a maioria da população destes territórios, internacionalmente reconhecidos como parte da Geórgia, possui cidadania russa.
Passando para a Ásia Central, a mudança da guarda é mais clara, à medida que os governos desta região se vão desligando da esfera russa a favor de Beijing. Tropas da CSTO ajudaram o regime cazaque de Kazym-Jomart Tokayev a esmagar violentamente os protestos de janeiro, resultando em mais de 200 mortos. Contudo, é de realçar que perto de 16% da população do Cazaquistão é etnicamente russa, habitando sobretudo a fronteira a norte com a Rússia. Não seria preciso muito, assim, para transpor os mesmos argumentos que justificam a agressão à Ucrânia para esta realidade. Torna-se lógica a recusa por parte de Astana tanto em legitimar as campanhas de expansão russas, como em auxiliar o seu aliado de longa data no conflito em decurso. O isolamento internacional em que a Rússia se encontra, argumenta Temur Umarov, faz com que a dependência económica do Cazaquistão face a esta se torne mais valiosa que antes, ao mesmo tempo que poderá servir de pretexto para que Tokayev caminhe em direção a eliminá-la – um objetivo nacional desde a independência deste país em 1991. Em meados de setembro, um renovado conflito fronteiriço entre o Quirguistão e o Tajiquistão levou a que o papel da Rússia enquanto garante da segurança regional fosse mais uma vez posto em causa. Moscovo mantém uma presença militar significativa na região, porém o seu falhanço em manter a paz entre supostos aliados oferece à China uma oportunidade para assumir este papel. Xi Jinping tem-se apresentado como defensor da integridade territorial tanto do Cazaquistão como do Quirgistão, ao mesmo tempo que patrocina um projeto ferroviário de 4 mil milhões de dólares juntamente com este último país e o Uzbequistão. Projeto esse que encaminhará exportações chinesas para a Europa sem passar pela Rússia. Por enquanto, ainda é cedo para decretar o afastamento involuntário da Rússia como principal responsável pela segurança das suas ex-colónias como definitivo. Parafraseando Marianne Larouelle na Foreign Affairs, se o papel diminuto deste país na 22ª Cimeira da Organização para a Cooperação de Shanghai revela algo, é que o surgimento de potenciais substitutos, como a China ou a Turquia, pinta um futuro incerto para o Cáucaso e a Ásia Central.
Resta a Bielorrússia de Aleksandr Lukashenko. Durante quase três décadas, o ditador bielorrusso tem governado o seu país com base no poderio militar e económico do seu vizinho a leste. Tal como Tokayev neste ano, Lukashenko em 2020 recorreu a Putin para sobreviver os protestos maciços que surgiram com a sua vitória nas eleições presidenciais, denunciadas como fraudulentas pelo Ocidente e pela candidata da oposição, Sviatlana Tsikhanouskaya. Desde fevereiro, a Bielorrússia tem servido como uma base militar gigante para o esforço de guerra russo, permitindo o estacionamento tanto de tropas como de mísseis. O receio maior, de momento, é de uma potencial entrada bielorrussa na guerra, abrindo uma nova frente a norte, porém tanto analistas como o próprio Lukashenko reconhecem que a fraqueza e inexperiência deste exército de forma alguma contribuiria para travar a marcha da derrota russa. Por último, dada a natureza colonial/imperialista desta guerra, o povo bielorrusso não partilha a mesma motivação para uma participação ativa. Juntando isto à já precária situação interna do regime, tal cenário quase certamente seria o último prego no seu caixão.
Regressando ao parágrafo inicial, Hodges baseia o seu argumento em três premissas: a humilhação das forças armadas, os danos causados à economia e a natureza esparsa e de declínio crónico da população russa. A primeira é clara, pois às previamente referidas perdas humanas e logísticas no terreno junta-se a ofensiva ucraniana em direção a Kherson e potencialmente novas incursões no Donbas, assim como ataques com drones na base naval de Sevastopol, na Crimeia. Paralelamente, a 15 de outubro, três mercenários tajiques assassinaram o tenente-coronel Andrey Lapin num campo de treino perto de Belgorod. Os motivos deste massacre centram-se em torno de insultos alegadamente proferidos numa reunião, por Lapin, contra Alá, o que ofendeu os soldados presentes. Esta reunião havia sido convocada depois de soldados muçulmanos se recusarem a combater numa guerra que “não é deles”. O número total de mortos varia de 11, segundo fontes estatais, para 22 ou 30, segundo fontes independentes. Este é um dos inúmeros casos de contestação interna ao decreto de mobilização, que resultou em protestos em certos urbanos por toda a Rússia e quase 2400 prisões (dados de setembro). Isto significa o seguinte: o pacto informal entre Putin e o povo russo – segundo o qual o último se refreava de participar ativamente na política e dava carte blanche aos caprichos do primeiro, em troca de uma relativa estabilidade, prestígio internacional e a sensação de superação da crise dos anos 90 – foi quebrado. As intervenções militares da Rússia até então, nomeadamente na Chechénia, Geórgia e Síria, haviam sido espetáculos a consumir por uma população sedenta de restauração imperial.
Com a mobilização, a guerra chegou a casa. Como diz o filósofo Vlad Vexler num vídeo publicado no YouTube, politicamente falando, Putin precisa dos russos colados ao sofá, mas militarmente precisa deles na Ucrânia. Estes protestos têm tido particular intensidade no Daguestão. Esta república autónoma, situada no norte do Cáucaso, viu mais de uma centena de detidos nas últimas semanas. Para além da importância demográfica destas regiões, a multiplicidade étnico-cultural do Daguestão e a pobreza da sua população, exacerbada por políticas do Kremlin, podem conduzir a um verdadeiro barril de pólvora à medida que a oposição a Putin se transforma numa questão existencial. Assim, parafraseando Paul Goble no Eurasia Daily Mirror, estes protestantes podem simbolizar o início de um levantamento muito maior no norte do Cáucaso, à medida que o aparelho repressivo russo tem concentrado cada vez mais dos seus recursos na Ucrânia. Em contraste, a Chechénia regista muito menos perdas do que o Daguestão. Esta região é governada desde 2007 por Ramzan Kadyrov, um dos mais próximos aliados de Vladimir Putin. Embora internacionalmente reconhecida como parte integrante da Federação Russa, Kamil Galeev descreve-a como “um reino pessoal de Kadyrov em vassalagem pessoal a Putin”. Galeev adota a definição de colónia de Carl Schmitt – um território parte de um país segundo o Direito internacional e fora deste segundo o Direito interno – e reconhece que Putin é ele próprio a plataforma que mantém Kadyrov na sua posição de vice-rei absoluto, mas suspeita que ele e os Kadyrovtsy formarão a última linha de defesa em caso de colapso do regime. Ou seja, são uma guarda pretoriana informal.
As críticas de Kadyrov ao desempenho militar da Rússia, bem como a sua recomendação do uso de armas nucleares táticas, podem revelar desespero da sua parte, ou sinais de um conflito interno secreto entre o líder checheno e os restantes membros da elite, nomeadamente Yevgeny Prigozhin e Sergei Shoigu. Como o afirma o cientista político Dimitry Oreshkin, o modelo de governo da Rússia assenta a Putin como uma luva, é desenhado para girar em torno de um líder providencial, logo qualquer um dos seus eventuais substitutos precisa de resultados imediatos para conquistar a sua legitimidade. Porém, a derrota na Ucrânia impede que isso aconteça, logo qualquer operação de decapitação é de momento demasiado arriscada. Manter os seus subordinados em luta constante entre si previne-os de se unirem contra Putin, tal é uma estratégia comum de qualquer autocrata, mas num cenário de guerra a série de derrotas leva à busca de bodes expiatórios. À medida que o sentimento de angústia aumenta no seio das elites, mais instável fica o castelo de cartas, e à medida que figuras como Prigozhin e Kadyrov se tornam mais vocais contra a nomenklatura, mais frágil fica o próprio aparelho de Estado russo. Como escreve Tatiana Stanovaya, a obsessão de Putin com a Ucrânia pode não ser partilhada pelo resto da elite, e esta poderá estar já a ponderar cenários nos quais a derrota seja mais digestível.
Tanto Prigozhin como Kadyrov são opções mais extremas, possivelmente as piores alternativas. O analista político Abbas Galyamov sugere Dmitry Patrushev, ministro da Agricultura e filho de Nikolai, Secretário do Conselho de Segurança da Rússia e ex-líder do FSB, Sergei Kiriyenko, ex-primeiro-ministro, ex-presidente da Rosatom e vice-chefe de gabinete do Kremlin, Sergey Sobyanin, autarca de Moscovo, ou o atual primeiro- ministro Mikhail Mishustin. Como membros da elite governante, estes surgem como possíveis mediadores de uma possível paz entre o núcleo duro do regime e o Ocidente. Alguns no Ocidente poderão até sonhar numa reforma encabeçada pelo ativista Alexei Navalny, preso desde 2021. Isto é uma ilusão. A lista de posições políticas questionáveis tomadas por Navalny ao longo dos anos deixa apreensivo qualquer democrata que se preze. Por outro lado, a experiência de Gorbachev e Yeltsin demonstrou que não basta ter um “czar benevolente” para garantir uma transição segura para a democracia. Seria apenas um placebo contra o problema maior. Qual é esse problema, então? A ideologia de domínio imperial do Kremlin. A paranoia, a insegurança, a sede de expansão, a glorificação do vozhd (líder) e o espezinhamento do indivíduo. Estes formam o legado da águia bicéfala e da estrela vermelha. Enquanto houver um vozhd, haverá um império para manter ou recuperar. Enquanto houver um império para recuperar, haverá guerra.
Infelizmente, na visão de Nicolas Tenzer, esta parece ter envenenado a maioria da população russa, ao ponto desta não conseguir ligar a repressão interna com os massacres no exterior. Desde que consigam respirar, estão confortáveis com a corrente ao pescoço. Para Tenzer, assim, qualquer reforma interna das instituições russas é, de momento, impossível. Tal evolução virá de fora. Primeiro é preciso assegurar a derrota total e radical das forças de Moscovo na Ucrânia, o que depende da inflexibilidade da ajuda ocidental a este país. Depois, o Ocidente deverá ignorar as ingenuidades que o induziram em erro na década de 90, nomeadamente a legitimação do chauvinismo russo-soviético e a ilusão de que o comércio magicamente traria a Rússia para o campo das democracias. Por último, uma espécie de “tutelagem” económica e social da futura Rússia seguir-se-á, encabeçada pela União Europeia. Proceder-se-á então à “desputinização” da sociedade russa, da desmilitarização das escolas e da sociedade como um todo, a redefinição do contrato social visando a promoção da verdade histórica e científica, plantando as sementes de uma sociedade civil forte, etc. Acima de tudo, este ideal, por muito fantasioso que pareça, tem de ser interiorizado pelo povo russo. Não pode simplesmente ser imposto por potências ocidentais ou por uma pequena clique política. É preciso haver vontade de ambos os lados, pois tal mudança não acontecerá de um dia para o outro. Eis o melhor dos cenários, o que “deve” acontecer.
Imagine-se, por outro lado, que Putin consegue um acordo que mitigue as suas perdas e lhe assegure algo que o líder russo consiga moldar e vender na forma de uma vitória. É mais que óbvio que qualquer acordo não asseguraria uma paz duradoura, mas sim tempo para Putin reagrupar e atacar novamente, se sentir que a conjuntura internacional lhe é novamente favorável. Aviezer Tucker descreve tal cenário como desastroso em dois sentidos: a Rússia cairia numa espiral de totalitarismo, isolamento e paranoia, enquanto a Ucrânia se veria obrigada a tornar-se uma Israel, constantemente receosa de uma renovada ofensiva e dependente de auxílios do exterior. O fechar definitivo dos mercados europeus levará esta Rússia a voltar-se cada vez mais para a China, à medida que a necessidade de importações e de injeções de capital vão desequilibrando extraordinariamente a balança a favor de Beijing. É difícil imaginar que Moscovo aceitaria esta nova posição de subserviência de bom grado, o que leva Dmitri Alperovitch e Sergey Radchenko a ponderar se, em resposta, não haveria uma nova aproximação ao Ocidente por parte da Rússia.
Ambos estes cenários, como é óbvio, implicam que o Ocidente manifeste o seu interesse em manter uma Rússia estável e unida. Frise-se de novo, porém, que tal fim está primeiramente nas mãos do povo russo. Este país é 70 vezes maior que a Jugoslávia. As minorias étnicas que o compõem correspondem a um quarto da população. E, claro, possui o maior arsenal nuclear do mundo. Assumindo um colapso do aparelho de Estado, como assegurar que estas não caem nas mãos erradas? Estamos prontos para considerar uma balcanização da Rússia? Em abril, Juraj Mesík pintou um retrato concreto de um colapso possível. Este dar-se- á num espaço de 3 a 5 anos, os territórios ocupados na Ucrânia, Geórgia e Moldova seriam devolvidos, as Curilas e a Carélia voltariam respetivamente ao Japão e à Finlândia, o futuro de Kaliningrado estaria nas mãos dos europeus, e a China poderia até reivindicar a bacia do rio Amur, a chamada Manchúria Exterior. O difícil estaria em pensar os restantes territórios. Considerando a Rússia um “império verticalmente controlado e centralizado” em Moscovo, assente na ideologia de domínio imperial, no aparelho securitário e nas receitas de energia, Mesík vê como bastante provável que a gradual desintegração destes pilares resulte em novos Estados, de língua russa ou não, assim como num longo período de pobreza e violência. Por sua vez, o historiador russo Alexander Etkind escreve “não estou de todo a apelar para o colapso da Federação Russa; estou só a prevê-lo”, pois a invasão da Ucrânia deu início a uma cadeia de eventos que inevitavelmente terá este final. Etkind explora a noção da reconquista de territórios ucranianos como fetiche partilhado pelos russos e coloca as bases do poderio deste país no petróleo e nas armas nucleares. Se a Rússia perder a guerra sem recorrer à opção nuclear e se o mundo aprender a viver sem petróleo russo, que poder este país realmente tem? A Eurásia pós-Rússia é uma ideia ainda vaga, podendo-se assistir ao germinar da democracia em alguns Estados, enquanto tensões étnicas e a falta de recursos ou de estruturas de poder definidas pode levar ao recrudescer de guerras e de autocracias em outros.
Segundo Alexander Motyl, a perestroika de Mikhail Gorbachev ateou o fósforo que haveria detonar o barril de pólvora que era o Partido Comunista da União Soviética. Hoje, um ditador errático e obcecado com as suas ilusões de grandeza histórica condenou milhares de civis inocentes e militares à morte, criou um clima de tensão nuclear que não era sentido desde a Guerra Fria, ameaça novamente a segurança alimentar global e, acima de tudo, será o responsável último pela desagregação da Federação Russa. Mesmo se o apoio à Ucrânia fosse mínimo, mesmo se as sanções fossem levantadas hoje, escreve Motyl, a desagregação chegará. Quer queiramos, quer não, ela chegará. Se não a podemos impedir, podemos ao menos preparar-nos.
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