As dinâmicas na cena internacional dependem, em grande parte, da interacção entre actores estatais e não-estatais. Os Estados, enquanto “actores conscientes que desenvolvem entendimentos comuns que influenciam o modo como lidam uns com os outros” (Fawcett, 2013, p. 28), são aqueles que parecem aproveitar mais as vantagens do soft power.
Antes de definir soft power e determinar o papel do desporto no mesmo é necessário analisar a noção de poder, sendo que esta surge como “a capacidade das pessoas, grupos, ou Estados têm de exercer sobre os outros e de conseguir o que querem do mundo” (Brown e Ainley, 2012, p. 160).
Para Joseph Nye, académico que se dedicou ao estudo do conceito de poder e desenvolveu os conceitos de hard power, soft power e smart power, o poder consiste na “capacidade de afectar os outros para obter o que se deseja” (Nye, 2019, p. 7), ou, por outras palavras, “a capacidade de influenciar o comportamento dos outros para alcançar os resultados desejáveis” (Nye, 2019, p. 7).
A realidade internacional é “socialmente construída por estruturas cognitivas que dão significado ao mundo material” (Adler, 1997, p. 319), sendo que as políticas levadas a cabo pelos Estados baseiam-se no tipo de relações que existem entre eles. No caso da sua natureza ser conflitual, os Estados tendem a se defender das ameaças através do hard power, ou seja, com recurso a meios militares. No que diz respeito a relações diplomáticas, os Estados agem por meio do soft power, apostando na cooperação entre si.
O soft power é “a nossa capacidade de conseguir o que queremos através da atracção, em vez da coerção (Nye e Donahue, 2000, p. 126) e, também, “de afectar os outros para obter resultados desejáveis recorrendo aos meios cooperativos de estruturar a agenda, persuasão e atracção positiva” (Nye, 2011, p. 19).
Deste modo, “os Estados, através das suas interacções, moldam as normas que compõem as estruturas sistemáticas” (Hinnebusch, 1997, p. 359) e é precisamente pelo facto de “o soft power se basear na atracção de alguns actores e os seus princípios” (Nye e Donahue, 2000, p. 25) que este está intimamente ligado às normas e são elas que atraem e influenciam as relações entre os Estados.
Importa ter em conta que, ao contrário do hard power, o soft power actua, por meio de factores intangíveis como instituições, ideias, valores, cultura e legitimidade de politicas” (Nye, 2011, p. 19).
Porém, ainda que os Estados possam, por si mesmos, desenvolver “politicas governamentais [que] podem reforçar ou desperdiçar o soft power de um país” (Nye, 2004, p. 8).
Quando se trata de abordar o desporto à luz do soft power, as instituições e a sociedade ganham relevância, sendo que é através das mesmas que o desporto ocupa um lugar na diplomacia e na conduta dos Estados, assim como nas suas políticas externa e doméstica.
Nygard e Gates (2013) consideram que o soft power é o “poder de persuadir através do qual um actor de forma não-coerciva convence outro actor para desejar as mesmas coisas que ele quer” (Nygard e Gates, 2013, p. 356).
Nesse sentido, “a política desportiva e a diplomacia constituem uma forma de soft power, dado que “procuram persuadir e não coagir” (Nygard e Gates, 2013, p. 237). Enquanto ferramenta do soft power, a diplomacia desportiva constitui-se como “um pilar importante da política externa”, estando à disposição “de grandes e médias potências” (Nygard e Gates, 2013, p. 237).
No desporto, o soft power tem acesso a diferentes mecanismos, como o image-building que funciona mediante o investimento do Estado ou instituições em determinados eventos, com “a recepção dos Jogos Olímpicos” como maior exemplo disso; a criação de uma plataforma para o diálogo que consiste no processo de “self-promoting” e na “promoção da relação”; a “ a construção de confiança entre nações, comunidades e indivíduos”, e, por fim, o soft power pode ainda agir como “catalisador para alcançar a reconciliação, integração e promoção de anti-racismo” (Nygard e Gates, 2013, p. 238).
O soft power, tal como o poder na sua essência, depende do “contexto – quem se relaciona com quem, em que circunstâncias” (Nye, 2004, p. 16), sendo que os acontecimentos na cena internacional têm um forte impacto nas políticas externa e doméstica dos Estados.
No que toca ao papel do desporto na tomada de decisão dos actores políticos, o melhor exemplo parece ser a organização dos Jogos Olímpicos e a sua recepção. A verdade é que “na era moderna os Jogos Olímpicos oferecem um dos espaços políticos internacionais mais úteis para os Estados e actores não-estatais para chamar a atenção para as aspirações políticas internacionais” (Rhamey Jr. e Early, 2013, p. 244)
Talvez um dos casos mais marcantes dos Jogos Olímpicos enquanto soft power seja o conhecido “Massacre de Munique”, em 1972, onde um terrorista palestiniano raptou 11 integrantes da equipa olímpica de Israel, que foram mais tarde assassinados, dando conta das aspirações políticas do povo palestiniano . Pode assim assumir-se este episódio como uma chamada de atenção para a ordem internacional para o reconhecimento de soberania da Palestina.
De forma a evitar episódios semelhantes, nos dias de hoje, diante da Guerra da Ucrânia, os atletas e equipas russas têm sido excluídos das competições, o que também tem provocado muitas polémicas, como é o caso de Wimbledon.
Percebe-se assim que os Jogos Olímpicos “constituem, [assim], um local para o exercício de soft power, uma arena de influência fora das capacidades militares em bruto, nas quais os Estados gastam recursos na prossecução de objectivos e reconhecer a relevância de resultados competitivos” (Rhamey Jr. e Early, 2013, p. 249).
Este evento pode igualmente ser visto como o único que “molda a percepção que os Estados têm da posição e status internacional”, sendo que “estão constantemente a observar os resultados do comportamento de outros Estados e actualizando as suas avaliações do status através de diferentes sinais e marcadores” (Rhamey Jr. e Early, 2013, p. 256).
Importa ter em mente que o “status é um aspecto complexo e multifacetado da ordem internacional e, enquanto potente influência sobre os comportamentos do Estado, é notoriamente difícil de medir” (Rhamey Jr. e Early, 2013, p. 256).
Apesar dos Jogos Olímpicos se apresentarem como o local onde o soft power mais sobressai, a verdade é que o desporto no geral “fornece espaços físicos para a realização de agendas diplomáticas nacionais” (Guthrie-Shimizu, 2013, p. 306).
Veja-se que “o soft power de um país reside, em primeiro lugar, em três fontes: a sua cultura (em locais onde é atractivo para os outros), nos seus valores políticos (quando lhes faz jus no país e no estrangeiro) e as suas politicas a nível externo (quando são vistas como legitimas e como tendo autoridade moral” (Nye, 1999, p. 11) e é no âmbito da cultura que o desporto se torna “uma ferramenta versátil da diplomacia cultural” (Guthrie-Shimizu, 2013, p. 326), ou seja, do soft power.
O poder que o desporto tem “além do seu lugar universal e duradouro nas sociedades ao longo da história” (Jackson, 2013, p. 275), enquanto instrumento cultural, passa pelo acto de “conquistar o povo (e assim atingir objectivos diplomáticos), de forma não só manifestamente política e certamente política e certamente não-ameaçadora” (Guthrie-Shimizu, 2013, p. 326).
Assim sendo, a constância e a importância do desporto na vida dos indivíduos facilita a influência que os Estados podem exercer uns sobre os outros através do soft power, inclusive porque é maioritariamente produzido pela sociedade civil e instituições, seja no âmbito dos Jogos Olímpicos seja noutros eventos desportivos como é o caso dos torneios de futebol ou de ténis, onde o impacto que os clubes, marcas ou jogadores têm nas pessoas, aumentam, inevitavelmente, o nível de influência que determinados países têm na forma de agir de outros.
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