Exércitos de Potemkin: A Derrota Final da Rússia na Ucrânia

Desenvolvimentos recentes levaram a que este artigo fosse dividido em duas partes. A primeira é uma análise geral à situação no terreno, procurando-se compreender os problemas enfrentados pela Rússia desde o início da “operação militar especial” e as ramificações da ofensiva ucraniana em decurso desde agosto. A segunda parte entrará ocasionalmente no plano da especulação e traduzir-se-á em considerações sobre o futuro da Rússia e que preparações a ter em conta a longo prazo. Esta será publicada em breve. Ao longo da redação deste artigo foram tidas em conta, para além dos eventos em tempo real, opiniões variadas de especialistas e, sobretudo, os relatórios diários do Institute for the Study of War (ISW) sobre a guerra russo-ucraniana.


A Rússia perdeu a guerra na Ucrânia. A pompa e circunstância organizada em Moscovo na última semana de setembro é uma mera cortina de fumo que dificilmente reequilibrará as forças no campo de batalha, muito menos virar a maré a favor de Vladimir Putin. Estas são afirmações ousadas, é verdade. Durante décadas a imagem da Rússia como potência militar renascente, com tentáculos espalhados por todo o mundo e pronta para tomar o seu legítimo lugar num novo mundo multipolar foi alimentada ao público ocidental por uma legião de analistas. Com o ritmo das paradas militares na Praça Vermelha ainda preso no ouvido, esse público estava pronto para aceitar a invasão de fevereiro como a entronização do novo czar e o ressurgimento do seu império. E depois a Ucrânia resistiu.


Os sinais estavam todos lá, para aqueles que os quisessem ver. Citando o general prussiano Helmuth von Moltke, nenhum plano resiste ao contacto com o inimigo. A adaptação às circunstâncias é absolutamente crucial, mas uma análise das ações russas não deve legitimar cegamente a sua propaganda em busca de um equilíbrio que não existe. Oleksandr Hruzevych, vice-chefe do Estado-Maior do Comando das Forças Terrestres ucranianas, revelou em abril que os soldados invasores traziam consigo uniformes de parada. Isto revela a certeza reinante nos círculos militares do Kremlin de que a força inicial de cerca de 150 mil tropas seria suficiente para realizar uma ofensiva relâmpago. Contava-se com a tomada dos principais centros urbanos e a capitulação do governo de Volodymyr Zelensky em cerca de 72 horas. Tal não aconteceu. Como escreveram Margarita Konaev e Kristin Braitwaithe para a Foreign Policy, guerras urbanas são sempre cenários a evitar para quaisquer exércitos, dada a vantagem concedida aos defensores pelas infraestruturas urbanas que impede uma concentração de veículos blindados e conduz à dispersão de soldados no terreno. Louis DiMarco afirma para o Modern War Institute que uma força invasora deve possuir um rácio de três para um de modo a vencer o adversário. Em cenário de guerra urbana, tal rácio passa para seis para um. Aquando da batalha pela capital ucraniana em março, a Rússia possuía uma vantagem de 12 para um e isso não lhes garantiu a vitória. Os amplamente documentados falhanços tanto a nível tático como logístico revelaram a incapacidade total da Rússia superar estas barreiras.


A 29 de março, a derrota a norte e nordeste foi reapropriada pela máquina de propaganda do Kremlin para simbolizar uma mudança de estratégia. O novo objetivo seria um foco na região leste, nomeadamente o Donbas, na qual a Rússia tinha tido um melhor desempenho. Porém, entre agosto e setembro, a Ucrânia lançou a sua contraofensiva. Com recurso a apoios ocidentais tanto em termos de armas, treino e inteligência, aproximadamente 6 mil km2 de território a nordeste foi recapturado, nomeadamente as cidades de Kupyansk, Balakliya e Izyum. Esta última é particularmente relevante não só pela importância estratégica da sua estação ferroviária, mas pela descoberta de quase 500 corpos numa vala comum, a maior parte deles mostrando indícios de morte violenta causada pelos ocupantes russos. O avanço ucraniano também se fez sentir a sul e a leste, nos territórios das repúblicas-fantoche do Donbas. A mais recente vitória da Ucrânia traduziu-se no cerco e retomada da cidade de Lyman, em Donetsk. Entre 30 de setembro e 1 de outubro, cerca de cinco mil soldados russos foram obrigados a bater em retirada de modo a evitar o seu encurralamento em todas as direções. Esta vitória, juntamente com a destruição de linhas de comunicação terrenas na área de Drobysheve-Lyman, coloca em sério risco as posições russas no norte do Donbas. Primeiramente focada na destruição de alvos militares, logísticos e de transportação, a ofensiva ucraniana a sul obrigou recentemente à retirada das forças russas em direção à cidade de Kherson. Fontes do governo ucraniano revelam que cerca de 50 localidades foram retomadas, sem especificar desde quando.


A derrota russa é visível nas perdas catastróficas de equipamento militar. Desde fevereiro, a Rússia perdeu mais de 1200 tanques, 52 helicópteros, 136 drones, 60 aviões, 164 postos de comando e estações de comunicações, quase 1400 veículos de combate de infantaria, 101 e 218 peças de artilharia rebocada e autopropulsada, respetivamente, entre outros. De um total de 6722 peças de equipamento russo perdidas catalogadas pelo blog militar Oryx, 4094 foram destruídas, 159 foram danificadas, 306 foram abandonadas e 2163 foram capturadas pela Ucrânia. O auxílio militar prestado pela comunidade internacional, sobretudo pelo Ocidente, tem-se revelado precioso, nomeadamente o envio de artilharia moderna e lançadores múltiplos de foguetes HIMARS. Estes têm sido cruciais na destruição de objetivos logísticos, como pontes, depósitos de munições e linhas férreas, impedindo assim que a Rússia reabasteça as suas forças cada vez mais exaustas.


Paralelamente, das cerca de 200 mil tropas no terreno desde o início da invasão, as forças armadas ucranianas estimam que 61 mil foram mortas e 183 mil foram feridas, contando também com mil prisioneiros de guerra. É de salientar que, de um modo geral, registam também perdas logísticas superiores às previamente mencionadas. As baixas tornam-se cada vez mais difíceis de substituir, à medida que batalhões convencionais treinados dão lugar a recrutas inexperientes e a grupos irregulares de voluntários, incluindo prisioneiros. A derrota em Kharkiv, a primeira reconhecida pelo Kremlin, tem servido como motivadora de novos esforços de recrutamento, mas o ISW acredita que estas novas unidades pouco ou nada acrescentam à eficácia militar da Rússia. Pior ainda, lança a suspeita que sejam sintoma de um crescente rift entre Putin e o alto comando militar e prevê um agravar das discrepâncias no que toca ao treino, objetivos e hierarquias de comando entre as forças armadas russas, irregulares, chechenos e conscritos de Donetsk e Luhansk. Como Ruslan Leviev escreve para a organização Conflict Intelligence Team, sendo citado pelo Washington Post, a Rússia já não tem meios de recuperar o território perdido.


Para além do insucesso militar, a guerra russo-ucraniana enterrou de vez o cliché ocidental de assumir que a divisão linguística da Ucrânia se traduzia numa polarização nacional irreconciliável, como se a população das Américas clamasse em massa pela reunião com as respetivas metrópoles. O próprio referendo de independência de 1991 havia demonstrado que mesmo as regiões entendidas como mais pró-russas, a Crimeia, Luhansk e Donetsk, votaram favoravelmente, com 54,14%, 83,86 e 83,9% respetivamente. Na visão de Taras Kuzio, a invasão conduziu a numa avassaladora convergência de interesses por parte dos ucranianos em matérias de identidade nacional, língua, pendor geopolítico e, sobretudo, “desrussificação”. Ou seja, a Ucrânia nunca mais integrará o projeto imperial russo de livre vontade. Ao mesmo tempo, o incondicional apoio prestado pelo Ocidente a Kyiv, bem como as candidaturas deste país tanto à União Europeia como mais recentemente à NATO, deixam claras as suas intenções no imediato pós-guerra.


A Rússia de Vladimir Putin vê-se numa corrida contra o tempo. Em primeiro lugar, precisa de homens para colmatar as suas perdas no terreno. Em segundo lugar, precisa de consolidar as suas conquistas de modo a assegurar o contínuo apoio interno à invasão e a justificar em parte os seus falhanços até agora. Em terceiro lugar, uma vez que o esperado esmorecimento do apoio externo ao seu inimigo não se materializou, precisa de forçar a mão do Ocidente a acordar em negociações que congelem o conflito e permitam ao Kremlin lamber as suas feridas. É neste contexto que se integram a mobilização “parcial”, as “anexações” de território a sudeste e o agravar de tom nas ameaças nucleares. Contudo, nenhum destes novos fatores serão suficientes para virar o jogo a favor do regime moscovita.


Comece-se pela mobilização. O decreto chegou a 21 de setembro, oficialmente englobando apenas 300 mil homens com experiência militar. Como seria de esperar, as ações do Kremlin não correspondem às palavras. Fontes opostas ao regime, como a Novaya Gazeta, apontam para planos de aproximadamente um milhão de mobilizados e inúmeros relatos demonstram que os limites impostos a pensionistas ou indivíduos sem experiência militar ou com problemas de saúde não estão a ser respeitados. Em termos muito simples, Putin pretende atirar homens ao problema. De momento, existem duas vertentes a analisar relativas a esta estratégia e nenhuma delas pinta um cenário positivo para o Kremlin. A primeira centra-se no teatro de guerra em si: a mobilização é uma corrida contra o tempo, pois o ditador russo espera que o seu povo chegue em números e a tempo suficiente para colmatar o envio de armas do Ocidente a Kyiv. A realidade tem outros planos. Os novos recrutas precisarão também de armas, equipamento, mantimentos, etc., mas sobretudo precisarão de treino, treino esse que exigirá tempo, tempo esse que o Kremlin não está disposto a ceder. Esta situação entra em contraste direto com a
Ucrânia, cujos 200 mil ativos no início da guerra têm sido reforçados com voluntários e novos recrutas treinados em território nacional e em países parceiros, como o Reino Unido e a Polónia. Tome-se como exemplo o 3º Corpo do Exército russo. Esta unidade composta por 10 mil soldados havia sido formada no verão e enviada para a frente em Kharkiv. Durou cinco dias, sendo obliterada pela contraofensiva de agosto. A segunda vertente arrisca-se a incorrer em erro, ao seguir uma racionalidade que pode muito bem não existir. A esperada ampla mortandade sofrida pelos novos recrutas russos dificilmente resultará em vitórias militares ou sequer na recuperação dos territórios perdidos recentemente, mas e se não for esse o plano? A máquina de guerra de Moscovo tem sido alimentada sobretudo por soldados de minorias étnicas, para os quais o exército é a única saída de uma vida marcada pela pobreza e discriminação. Esta preferência (ou falta de opção) em tropas coloniais novamente se fez sentir nestes últimos dias, com a mobilização a afetar de forma desproporcional regiões como a Buriácia, o Daguestão ou a Iacútia, bem como territórios ocupados como o Donbas e a Crimeia. Tendo isto em mente é fácil racionalizar que a mobilização sirva como uma limpeza étnica por proxy, como acusa Mykhailo Podolyak, conselheiro de Zelensky.


Ao mesmo tempo, a 30 de setembro, a Rússia procedeu à anexação ilegal de quatro territórios ucranianos, juntando os oblasts de Kherson, Zaporizhzhia, Donetsk e Luhansk às anteriormente (também ilegalmente) anexadas república autónoma da Crimeia e cidade de Sevastopol. A farsa deu-se depois de um “referendo” na semana anterior. Neste processo, soldados russos nas regiões ocupadas deslocaram-se porta a porta e, com a habitual gentileza da força das armas, convenceram os habitantes a votar no seu futuro. Não é relevante mencionar resultados concretos, sendo seguro presumir que estes são pré-determinados. Assim, este processo deve ser entendido não como sequer uma ilusão de legitimidade democrática, mas como uma afirmação do verdadeiro objetivo da invasão: a aniquilação da Ucrânia como entidade independente e separada da visão russa de império. No fundo, trata-se de uma filtração: os ucranianos são coagidos a regressar à submissão colonial a Moscovo ou são destruídos. Porquê anexar estes territórios em específico? Porque a Rússia não controla os restantes. Porquê agora? Porque três dos quatro territórios “anexados” não se encontram totalmente sob o seu controlo. No seu infinito génio militar, Vladimir Putin permitiu que Kyiv passasse a ocupar território russo de um dia para o outro. O cúmulo do absurdo deu-se com a admissão do porta-voz do Kremlin, Dimitry Peskov, de que Moscovo literalmente não sabe onde ficam as suas próprias fronteiras internacionais. Ou seja, a Rússia procurou justificar em parte o decreto de mobilização e sobretudo mitigar as suas perdas ao travar a contraofensiva ucraniana, algo que não consegue fazer com meios convencionais.


O que nos leva à questão nuclear. Estará a Rússia disposta a recorrer ao seu arsenal nuclear para consolidar os seus progressivamente menores ganhos territoriais? Observando o discurso de Putin na cerimónia de “anexação” dos territórios a leste, o Institute for the Study of War afirma no seu relatório especial sobre o tópico que este não divergiu da habitual retórica do Kremlin, pois a flutuação das áreas controladas não lhe permite definir claras linhas vermelhas no que toca a territórios que vê como russos. Caso o tivesse feito, Putin já teria múltiplos pretextos, tendo em conta os ataques ucranianos à Crimeia e a Belgorod, bem como, mais recentemente, a retomada de Lyman e o avanço sobre o oblast de Kherson. Vagas ameaças nucleares têm tido como fim dissuadir o Ocidente a cessar o seu apoio militar à Ucrânia e compelir esta última à mesa de negociações. Isto em teoria permitiria o congelar do conflito, a consolidação militar e administrativa das regiões “anexadas” e uma muito necessária recuperação das forças armadas russas, de modo a renovar a sua ofensiva numa data futura, como ocorreu na Chechénia. Mas estará Putin decidido em ir em frente? O antigo embaixador norte-americano Michael McFaul afirma que um ataque nuclear não serve objetivos militares alguns, e o ISW vai de encontro a essa opinião, referindo-se a ataques no plural para sequer conter a contraofensiva da Ucrânia. Para além disto, torna-se fácil assumir que as já parcamente equipadas forças russas não sejam capazes de avançar sobre eventuais alvos de bombas nucleares. O governo de Zelensky não tardou a responder às declarações de Putin, ao rejeitar por completo futuras negociações enquanto este último governar a Rússia e ao formalizar um pedido de adesão à NATO. Assim, pressupõe-se que mesmo o uso de uma bomba nuclear não quebrará a vontade de lutar ucraniana. Por último, a intervenção direta e convencional dos Estados Unidos (ou da NATO) no conflito, sobretudo a neutralização da frota do Mar Negro e das posições militares russas dentro da Ucrânia, muito provavelmente teria lugar a partir da primeira detonação.


Um exército ucraniano mobilizado desde o início da invasão, que conta com milhares de milhões de dólares em financiamento ocidental, armas e equipamento ocidentais e reformas ao estilo ocidental, cuja ênfase em iniciativas individuais e de oficiais no terreno contrasta com a abordagem rígida e antiquada de Moscovo, presa a trâmites soviéticos e czaristas, conduz oficiais como o general norte-americano e ex-líder da CIA David Petraeus a concluir que Putin se encontra num processo irreversível em direção à derrota. Entre os seus vícios constam uma vaga de corrupção generalizada, uma estrutura de comando excessivamente de cima para baixo e um medo de falhar que conduz a imediatas buscas de bodes expiatórios e à fuga de responsabilidades. Este aspeto em particular leva ao passe da metafórica batata quente para os círculos mais altos, enquanto de uma forma geral reina a obediência cega a ordens. No topo da pirâmide encontra-se Vladimir Putin. Escreve Lawrence Freedman na Foreign Affairs que as pré-suposições do presidente russo sobre o estado das forças ucranianas levou-o inicialmente a procurar uma vitória rápida. Esta certeza impediu-o de ver a sua credibilidade internacional, assim como o seu poder de negociação, a esfumar-se rapidamente. A mobilização veio tarde, tendo em conta a insuficiência numérica da onda inicial, e a falta de equipamento e treino tem tudo para se tornar desastrosa aquando da chegada do inverno. O pouco equipamento e armas capazes que têm é progressivamente abandonado à medida que a Ucrânia avança, pausa ou recua a seu bel-prazer. Supostamente a segunda potência militar do mundo e com o maior arsenal nuclear no seu bolso, a Rússia vê-se encostada numa posição defensiva, meramente reagindo às ofensivas de Kyiv.


Entre 1904 e 1905, a Rússia czarista procurou uma vitória rápida face ao emergente império do Japão. Este país, apesar da sua extremamente rápida industrialização, ainda era visto como uma curiosidade exótica ou um reino culturalmente inferior. A derrota e subsequente humilhação russa, no espaço de um ano, pode demonstrar que a História não se repete, mas ocasionalmente rima. Putin não pode perder esta guerra, como é comummente afirmado, mas para a Ucrânia e para o Ocidente como um todo, é imperativo que perca. Que ramificações económicas e políticas, internas e externas, terá tal derrota? É cada vez mais importante imaginar um cenário concreto. Tal será tentado na próxima parte deste artigo.

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