Fukuyama precipitou-se. O fim da história está bem longe, e a corrida por poder, domínio e força continua a desenrolar-se num cada vez maior puzzle em que cada vez aparecem mais peças, quer sejam recursos naturais outrora dispensáveis que se tornam ponto central de agenda de um dia para o outro, quer seja a instabilidade em determinadas regiões cujas ramificações militares possibilitam às grandes potências – chamar-lhes-emos “atletas “- dar passos cada vez maiores até chegarem à meta, custe o que custar.
Se quisermos entender a substituição do atleta em decadência – a União Soviética, cujo processo de dissolução termina em 1991 – pelo atleta mais jovem, que passara as últimas décadas a estabilizar-se e a ambicionar entrar na corrida, – a República Popular da China, estabelecida em 1949 após uma Guerra Civil que durara mais de 20 anos – temos de saber fundamentar o que os nossos olhos veem com indicadores objetivos. Entre 1992 e 2010, o crescimento do Produto Interno Bruto colocou o atleta na ribalta, subindo do 11º para o 2º lugar no ranking mundial, marcando assim a mudança de paradigma na dinâmica política do continente asiático, passando a China a auxiliar os decadentes russos que já tinham de olhar para cima para encontrar o atleta mais vigoroso da região.
Contudo, para explicar a nova Guerra Fria entre Estados Unidos – sob liderança democrata após um festival republicano de 4 anos – e a China – que rapidamente parece saltar por cima do rival ocidental para a dianteira da pista – precisamos de compreender um dos alicerces de qualquer projeto de domínio mundial em matéria geopolítica: não basta ser uma potência económica e saber gerir a extensão enorme de território que se tem (lancemos números para a mesa: o território americano apenas ultrapassa o chinês por 237 000 quilómetros quadrados), é urgente ser amigo de todos.
Um dos polos mais importantes no jogo é o continente africano. Em 2020, a China
estava presente em 31% de todos os projetos de construção com valores acima dos 50
milhões de euros. Para adicionar mais peso à questão, será certamente suficiente
mencionar o facto de ser sido justamente a China a construir a sede da União Africana,
(e se dúvidas existissem acerca das intenções chinesas na região, foram instaladas
escutas pelos engenheiros chineses aquando da construção). Para além de
investimentos, a China ofereceu um parlamento ao Zimbabué e perdoou uma dívida ao
Sri Lanka, desde que ficassem com um dos seus portos, provocando tensões com a
Índia.
O objetivo chinês é simples: investir em países em desenvolvimento e potências
africanas que ambicionam sentar-se à mesa com os grandes jogadores, e em troca
receber toda a influência possível no continente ao endividá-los, porque a barragem
nigeriana e todos os outros projetos que a China se voluntariou a comandar não são
prendas: não existem prendas nem oferendas nas relações internacionais,
especialmente no que toca a uma potência com objetivos bem definidos, como é o
caso chinês.
Virando a âncora para a direita, encontramos a região do Médio Oriente, cheia de
atletas promissores e confrontos diplomáticos, militares e económicos que tornam a
região num foco essencial da corrida. Os Estados Unidos invadiram o Afeganistão a 7 de
outubro de 2001 e começaram a “reconstrução” do país assolado pelo domínio talibã
cerca de um ano depois, seguindo-se um período de transição de paz breve a que se
seguiram anos de incerteza e desconfiança. Em setembro de 2021, vinte anos depois
da incursão inicial, o exército comandado por Joe Biden sai de cena, deixando o palco à
mercê de novos atores, cuja primeira audição tinha sido breve e nada encorajadora. Tal
como a URSS, os Estados Unidos permanecem no Afeganistão durante demasiado
tempo e deixam uma marca aguda nos milhões de vidas que têm agora de se submeter
a condições ainda mais desumanas e imorais.
No Irão, a variável nuclear continua a ser o único assunto na mesa de reuniões. A grande potência ocidental encontra-se em posição delicada, já que a ideia de um acordo nuclear entre os dois países parece não ser consensual, especialmente para Israel, país vizinho que assume que um acordo entre os dois países afetará as relações com os EUA. No Iraque, invadido em 2003 pelos Estados Unidos sem qualquer pretexto – ou melhor, sob falso pretexto – deixou sem vida milhões de iraquianos e um buraco demasiado grande para a construção de uma ponte diplomática, sendo um país com focos de tensão internos que não deixam de ser também preocupantes. Os Estados Unidos continuam também na Síria, que apesar de não serem o verdadeiro alvo das incursões americanas – as tropas dos EUA atacaram soldados iranianos na fronteira entre os dois países – deixam também uma marca de violência e instabilidade.
Apesar de esforços diplomáticos por parte de Biden – vejam-se as boas relações com a Arábia Saudita, Israel ou com os Emirados Árabes Unidos – a marca americana no Médio Oriente pode gerar uma inerente relutância por parte das populações, que nada fizeram para provocar os conflitos armados e que acabam por ser os maiores perdedores de todos os perdedores das guerras no Iraque ou no Afeganistão. Com a estratégia bem oleada, a China tem a porta semiaberta (as alianças acima mencionadas ainda têm peso na região) para continuar o projeto de “auxílio estratégico” que começou em África e afirmar a sua importância no Médio Oriente.
Em fevereiro de 2022, a Rússia invadiu a Ucrânia. Após meses de crescente tensão na fronteira, as tropas de Vladimir Putin entraram no país vizinho para uma “operação militar” cuja nomenclatura não engana. O assalto descarado à liberdade ucraniana vitimou milhares e os objetivos russos não se alinham com os resultados: a Rússia está a falhar, e sairá a perder – como saem todos os participantes de todas as guerras – e com poucos aliados. Contudo, um desses aliados continua a ser a tão poderosa China, que faz o papel de bengala a uma decadente potência, à espera do momento em que esta passa para a cama de hospital para poder passar a ser suporte de vida.
As relações de Putin com Biden e o resto do Ocidente não melhorarão enquanto a liderança do primeiro não cessar, entrando em cena novamente o polvo jovem que quer uma Rússia dependente de si, mas não morta. Torna-se assim necessária extraordinária inteligência chinesa para navegar por entre os pingos da chuva, de modo a escapar das garras do Ocidente punidor e usar as suas para apertar a velha Rússia.
Curiosamente, é bem perto de território chinês que o maior foco de tensão entre as personagens da nova Guerra Fria se encontra. A ilha de Taiwan continua a ser referida por Pequim como parte da China, fazendo menção ao Consenso de 1992 entre o PC Chinês e o Kuomintang, que governava Taiwan. No entanto, os dois lados não se entendem quanto ao conteúdo deste consenso, falando a China do estabelecimento de “uma China” e Taiwan de “uma China, diferentes interpretações”, sendo Taiwan (ou República da China”) a “uma China” do consenso.
Desde que os EUA estabeleceram relações diplomáticas com a RP China em 1979 (e quebrou o mecanismo de defesa mútua com Taiwan), os responsáveis mantiveram relações oficiosas com a ilha e continua até aos dias de hoje a vender equipamento e armas, para desagrado chinês, que regularmente sobrevoa a ilha como forma de demonstrar a força e supremacia que tem sobre Taiwan.
As relações entre os dois atletas mais conceituados da pista internacional azedaram consideravelmente em agosto de 2022, quando Nancy Pelosi, Presidente da Câmara dos Representantes americana, aterrou em Taiwan para uma breve visita que não constava do itinerário. Durante a visita, Pelosi afirmou o apoio americano a Taiwan já reiterado pelo próprio Joe Biden, que prometeu auxílio em caso de agressão.
Para já, os chineses continuam desagradados e os americanos provocadores, resta-nos esperar pelo surgimento do bom senso. A corrida já mostrou ter corridas paralelas, e os atletas têm de ter os atacadores bem apertados.
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