O estado frágil da democracia da Guiné-Bissau

O país tem enfrentado reveses e adversidades na manutenção da estabilidade dos alicerces erguidos a favor do Estado de Direito guineense, que questionam a segurança dos cidadãos e a defesa da dignidade da pessoa humana.

O mês de fevereiro foi particularmente asfixiante para o processo democrático que acontece na Guiné-Bissau, um país da África ocidental banhado pelo oceano Atlântico. Apesar de todos os esforços, o país regride no que toca à proteção de liberdades, direitos e obrigações essenciais à condição do ser humano – eventos observados desde a crise política pós-eleitoral de 2020, que espalhou um caos pelas instituições estatais guineenses.

Algumas entidades civis, de propósito humanitário, dirigiram-se aos órgãos de soberania da Guiné-Bissau numa Carta Aberta, em julho de 2020, que procurava a conservação da construção constitucional da democracia pluralista, assente no respeito do Estado de Direito e respetivas instituições e na manutenção dos direitos civis e políticos. O conteúdo do comunicado aponta para espancamentos, ondas de raptos e de detenções arbitrárias, monitorização ilegal dos cidadãos, a debilidade do sistema de interdependência de poderes (especialmente do poder judiciário), consequentes violações constitucionais e perseguições e ataques a ativistas políticos e jornalistas, consentidos pela mão do Governo.

Silêncio à força

A derrogação, pelo menos parcial, da liberdade de expressão e de imprensa, por aquilo que Augusto Mário Silva, presidente da Liga Guineense dos Direitos Humanos, chama de “esquadrão de repressão”, com as detenções sem mandatos, fora de flagrante delito, veio a acentuar-se com os ataques às instalações da Rádio Capital FM, conhecida por criticar a conduta governamental. O primeiro ataque foi a 26 de julho de 2020 e o mais recente no passado dia 7 de fevereiro, que resultou na destruição da maioria do equipamento da rádio e em 5 feridos.

Lassana Cassamá, diretor da rádio (que se encontra, atualmente, em Portugal), relembrou os ataques às residências do antigo presidente da LGDH – Luís Vaz Marques –, do atual, Augusto Mário Silva, e, a mais recente, do comentador político Rui Landim, a 9 de fevereiro. O ataque com chuvas de balas e granadas de gás lacrimogéneo foi interrompido pela intervenção de vizinhos e acabou sem vítimas, e, assim como os ataques à rádio, sem investigações que identificassem envolvidos – deixando um precedente de impunidade aos que ameaçam liberdades e direitos fundamentais.

No 1º dia do mês de fevereiro de 2022, o Palácio do Governo, que, à data, acolhia uma reunião do Conselho de Ministros, que contava com a presença do presidente da República, Umaro Sissoco Embaló, foi alvo de uma sublevação. A tentativa de golpe de Estado fez cerca de 11 mortos, sendo um deles um suposto agressor, e já se encontra sob escrutínio do Ministério Público, tendo já ocorrido detenções, porém, sem a identificação dos indivíduos. Os 18 detidos encontram-se, ainda, privados de se reunirem com o seu advogado, Marcelino Intupe.

O Chefe de Estado guineense deixou evidente a conexão do ataque com os rebeldes de Casamança e com “gente relacionada com o tráfico de droga” – argumento fracamente fundamentado, ainda que a Guiné-Bissau seja um importante ponto de entrada do comércio de drogas provenientes da América do Sul, em direção ao continente europeu, apesar de o narcotráfico ser uma verdadeira pedra no sapato do Poder Político.

Alguns indivíduos questionam a veracidade da tentativa de golpe de Estado, se fora uma encenação, uma vez que algumas testemunhas oculares revelaram que a sublevação foi levada a cabo por indivíduos armados e vestidos à civil. A investigação que está a ser feita pode acusar o funcionamento débil da justiça guineense, uma vez que o historial de detenções arbitrárias e a disfuncionalidade do sistema de separação de poderes é uma realidade, ao mesmo tempo que se esconde a identificação dos detidos.

O cerco aperta

Sissoco Embaló já começou uma reforma nas Forças Armadas, tendo exonerado alguns membros do Estado-Maior da Armada e nomeado o coronel Baute Yamta Na Mam para vice-chefe do Estado-Maior do Exército – que terá resgatado o presidente durante a tentativa de golpe de Estado. Tendo, ainda, em atenção o ataque a Rui Landim, o Comissariado da Polícia transmitiu um comunicado que perpetua a instituição da política de tolerância zero a assaltos e episódios violentos, que, no seguimento de rusgas sem mandatos e detenções arbitrárias, confluem na propagação do medo junto da população.

Neste sentido, as próximas decisões do executivo são cruciais para desvendar as verdadeiras intenções do Poder político guineense, assim como se haverá um agravamento danoso das instituições democráticas, especialmente do sistema judiciário, que tem sofrido pelo funcionamento débil e, então, paralisado, do Supremo Tribunal de Justiça.

A conservação das instituições democráticas também se reflete na manutenção das negociações e relações com a oposição política, uma vez que o PAIGC tem, frequentemente, afastado acusações feitas pelo Chefe de Estado, numa perseguição aos dirigentes do partido, que os associam ao ataque de 1 de fevereiro. O partido contra-argumenta as acusações com base nas inúmeras ações judiciais levadas a cabo para impedir ou prejudicar a atividade política do PAIGC, cuja sede já foi invadida mais do que uma vez pelas forças de segurança guineenses, que também impediram a realização de um Congresso, devido a uma providência cautelar movida contra o partido por um militante.

Desde dia 4 de fevereiro que o país está em Estado de Alerta, para o combate à pandemia do coronavírus – um regime especial de suspensão parcial e provisória de determinados direitos, liberdades e garantias, de forma a lidar com uma calamidade pública ou para reestabelecer a ordem constitucional. Até à data, o país teve cerca de 8 mil casos de Covid-19 e 167 óbitos e o fundamento utilizado para o decreto do Estado de Alerta não convenceu a maioria, uma vez que alguns duvidam das verdadeiras intenções do executivo, visto que este regime especial prevê a suspensão de atividades político-partidárias e o PAIGC preparava-se para a realização de outro Congresso.

A LGDH tem acompanhado de perto todas as movimentações no país, uma vez que são questões que dizem respeito a um traço fulcral característico da democracia – a conservação da dignidade humana. A organização já se dirigiu à União Europeia e à ONU, pedindo a demissão do ministro do Interior, Botche Candé, devido à falta de competências para garantir a segurança pública e por compactuar com a “milícia do regime instalado” de espancamentos, intimidações e detenções.

A comunidade internacional, de forma geral, condenou as tentativas inconstitucionais de tomada do poder, tendo a CEDEAO procedido ao envio de uma força de apoio a estabilização social na Guiné-Bissau. O vizinho senegalês também se encontra mergulhado em protestos, face a tentativas de desmobilizar as forças da oposição política ao governo, assim como na Guiné, cujo Poder Político foi tomado por uma junta militar, em 2021, que diz estar a preparar o país para as próximas eleições.

Pela democracia

É necessário um reforço de atenção nas instituições democráticas e na justiça guineense, uma vez que a suposta tentativa de sublevação pode acompanhar uma série de ondas de coup d’État no continente africano que, ora têm regredido os Estados de Direito em construção para juntas militares de regimes rígidos e autoritários, ora constituem uma vaga instável de transições de poder.

Face ao quadro de deterioração e prejuízo processo de democratização da Guiné-Bissau e tendo em atenção a possibilidade de uma escalada da violência e agravamento do panorama sociopolítico, a comunidade internacional deve movimentar esforços, de forma a incentivar, a promover o respeito pelas instituições criadas em 22 anos de democracia e a impedir uma escalada para um regime totalitário.

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