Uigures e a crise humanitária

Xinjiang, uigures e China

Os uigures são uma etnia muçulmana cuja maior parte dos seus indivíduos habita a Região Autónoma Uigur de Xinjiang (XUAR), na China – sendo reconhecidos como nativos da região, havendo cerca de 1,6 milhões espalhados por vários países asiáticos, como a Rússia, Turquia e Cazaquistão. Assim como os tibetanos, são uma das 55 etnias reconhecidas pelo Governo chinês (tal como a etnia Han que representa, atualmente, cerca de 90% da população) alvo de reformas económicas, desde 1821, que têm vindo a prejudicar a comunidade em favorecimento da integração hegemónica dos Han na região, através de uma migração em massa.

Sendo uma região autónoma, com autoridade administrativa, as interferências do Governo, contra a vontade regional, motivaram a contestação dos uigures, reconhecendo a atitude como colonizadora e um ataque à identidade cultural e aos seus direitos políticos e religiosos – o que não é novidade na conjuntura chinesa, dada as inúmeras denúncias de perseguição a cristãos (e outras religiões) e prisão de ativistas políticos.

É a partir de 1930 que a situação atinge um ponto de tensão onde se declara oficialmente um conflito, o conflito uigur-chinês, marcado por inúmeras disputas territoriais, revoltas e tentativas de rebeliões, que confluíram na formação da República do Turquestão Oriental (1933-34 e 44-49). A fundação da República Popular da China, em 1949, vem dificultar a discussão de questões de autodeterminação dos povos, devido aos recentes reajustes no território nacional, pelo que se dá uma absorção do território pela RPC, estabelecendo o estatuto de região autónoma em 1955.

A migração forçada da etnia Han para a XUAR contribuiu para o desenvolvimento de um ambiente de tensão e, consequentemente, de separação entre povos, cobrindo Xinjiang de movimentos separatistas – a vontade de desvinculo da RPC, que tem entendido a autodeterminação dos uigures como movimentos terroristas, associando, automaticamente, a episódios de extremismo religioso. Em 2009, uma série de protestos contra esta migração em massa cobriram a cidade de Ürümqi, causando mais de 200 mortos, adensando-se, em 2014, com um ataque na mesma cidade, durante a visita do atual líder chinês, Xi Jinping, que acabou com 3 mortos e 79 feridos.

Xinjiang tornou-se um dos laboratórios experimentais de técnicas de videovigilância (scanners portáteis) à população, especialmente aos uigures, a quem Pequim mantém debaixo de olho, controlando indícios de radicalização, como a utilização do véu islâmico, o comprimento da barba ou a entrada em mesquitas e partilha de versículos do Corão. Porém, o controlo não fica por aqui, pois o que se vai observar, podemos abordar como um “epistemicídio”: descaracterização, destruição e perseguição dos valores e práticas da comunidade uigur, moldando-os ao padrão ideal do Governo (OLIVIERI, 2021: 105).

Centros de reeducação

A ideia dos centros de reeducação foi de Zhu Hailun, o secretário adjunto do Partido Comunista Chinês em Xinjiang, que elaborou um plano, confidencial, transmitido num telegrama à comissão responsável pelo assunto, resgatado pelo International Consortium of Investigative Journalists, onde expõe as bases para o que se vai encarar como o “maior encarceramento maciço de uma minoria étnico-religiosa desde a II Guerra Mundial”.

As causas para as detenções dos uigures são desconhecidas, mas contam-se quase 400 campos de reeducação (dirigidos como prisões de alta segurança) com estimativas até 2 milhões de presos, homens e mulheres, alvos de avaliações comportamentais, cujo remédio remete para procedimentos de tortura física, abusos sexuais, lavagens cerebrais e doutrinação forçada – afastamento do Islão e imposição da aprendizagem do mandarim -, de forma a transformar ideologicamente os detidos.

As informações quanto ao que se passa dentro destes centros é escassa, no entanto, a Australian Strategic Policy Institute arranjou maneira de espreitar para dentro dos campos e expor-nos os trabalhos forçados para 83 multinacionais, como a Amazon, BMW, Google, Huawei, PHV Corporation, Samsung, Sony, Volkswagen e Zara, que os uigures estão a ser submetidos. Algumas destas grandes empresas já responderam à publicação deste relatório a expor as inúmeras violações de direitos humanos, desvinculando e cessando parcerias com retalhistas e fornecedores de Xinjiang, contudo, é lógico deduzir que as desumanidades não cessaram (XU et.al, 2020). Recentemente, o South China Morning Post voltou a reforçar, à comunidade internacional, as exportações em massa de mercadorias saídas de Xinjiang em direção à União Europeia que procedem (tendo aumentado, este primeiro semestre de 2021, 131% face ao primeiro semestre do ano anterior), apesar do conhecimento de trabalhos forçados e das sanções já aplicadas pelo governo norte-americano, reforçando a necessidade de uma resposta europeia coletiva à crise humanitária.

Àquilo que se pode entender como a resposta chinesa à transferência de uigures para estas fábricas anteriormente mencionadas é uma graduação após todo o processo nos centros de reeducação, ao qual revela o presidente do governo regional, Shorat Zakir, que estes “conseguiram um emprego estável, melhoraram a sua qualidade de vida e vivem felizes“. Contudo, este discurso não condiz com os vários depoimentos que escaparam de dentro dos centros de reeducação.

Evasão de testemunhos

Desde março de 2017 que se têm recolhido relatos de dentro destes campos, onde o conhecimento duma realidade de limpeza étnica se forma, através: da esterilização de mulheres uigures, como meio para reduzir a natalidade uigur e facilitar a hegemónica presença dos Han; da vigilância intrusiva do comportamento da população e da assimilação cultural forçada através de detenções massivos e internamentos nos centros de reeducação.

Um dos testemunhos mais conhecidos é o de Tursunay Ziawudun, que fugiu de Xinjiang para o Cazaquistão, partindo de lá para os EUA, dando a conhecer ao mundo as constantes violações às mulheres que presenciava nos campos de detenção. Além disso, forneceu informações relativas a um campo em Xinyuan e à sua rotina no campo. Gulzira Auelkhan, uma mulher cazaque, revela que também foi mantida em cativeiro durante 18 meses nos campos de Xinjiang, onde a “forçaram a tirar a roupa daquelas mulheres, prender suas mãos e sair da sala”.

Uma vertente diferente destes testemunhos recolhidos acerca de abusos sexuais é o de Qelbinur Sidik, uma professora de mandarim que fora obrigada a ser esterilizada aos 50 anos e a colocar um dispositivo intrauterino para não engravidar, obrigada a dar aulas nestes campos. À luz da política de migração em massa dos Han, a natalidade dos uigures é estritamente controlada, ora através da esterilização feminina forçada ora da aplicação de DIUs, de tal modo que os nascimentos diminuíram em 60% entre 2015 e 2018. Qelbinur conseguiu escapar em 2019, sendo capaz de trazer a público estas informações chocantes do encarceramento em massa em Xinjiang, das degradantes condições higiénicas dos detidos e a restrição ao acesso a água, tendo testemunhado o transporte de um detido morto.

A defesa chinesa

No III Simpósio Central sobre o Trabalho em Xinjiang, Xi Jinping demonstra convicção e firmeza na execução das políticas levadas a cabo em XUAR, revelando o seu sucesso ao mesmo tempo em que se versavam sobre relatórios que apontavam para o crescimento económico significativo e a melhoria na proteção ambiental. Neste sentido, segundo as palavras do líder chinês, e em resposta às crescentes indagações da comunidade internacional, em Xinjiang é garantido e cumprido o direito à liberdade religiosa, e de longe se nega a existência dos centros de reeducação: são centros que promovem a integração profissional no mercado de trabalho, que acabam por impedir o crescimento do terrorismo.

Além do discurso de Xi Jinping, foram publicados vídeos onde surgem uigures a negar as relatadas violações de direitos humanos e desrespeitos à dignidade humana por parte das autoridades chinesas, mas que agora se entendem, através da obtenção de um documento, pela Associated Press, como uma estratégia do governo de Xi Jinping de atenuar as questões que a comunidade internacional tem levantado. Contudo, a publicação dos vídeos não foi suficiente para descontrair as organizações humanitárias, muito menos os governos que se foram pronunciando.

A resposta da comunidade internacional

A evasão de testemunhos suscitou, posteriormente ao posicionamento das organizações humanitárias, a discussão nos parlamentos, desde a classificação da crise dos uigures como genocídio, tendo em conta a Convenção de Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio de 1948, como a aplicação de sanções aos responsáveis envolvidos nas violações de direitos humanos.

Há inúmeras acusações informais de organizações, partidos políticos e jornais a chamar a atenção das grandes entidades da crise humanitária, no entanto, os pronunciamentos e algumas resoluções oficiais já começam a surgir. Zhu Hailun, o principal responsável pelos campos de detenção, já foi sancionado pelo governo dos EUA, do Canadá e do Reino Unido e pela União Europeia devido à violação dos direitos humanos, assim como a Chen Quanguo, o secretário-geral do partido desde agosto de 2016 e membro do Politburo chinês.

Nas últimas 24 horas da administração Trump, Mike Pompeo, o ex-Secretário de Estado, anunciou a classificação da calamidade como genocídio, acusou a China e o PCC de prática de crimes contra a humanidade e a imposição das sanções anteriormente mencionadas. O sucessor de Pompeo, Anthony Blinken, corroborou a posição do governo anterior.

Já a Câmara dos Comuns canadense aprovou, com 266 votos a favor, uma moção não-vinculativa de classificação do tratamento dos uigures pelas autoridades chinesas como genocídio. O debate da moção não teve votos contra, apesar de algumas ausências e abstenções, posição adotada pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Marc Garneau, em nome do governo de Justin Trudeau. Trudeau chegou a pronunciar-se sobre a crise dos uigures, realçando a utilização do termo genocídio como “extremamente pesado” sem a investigação aprofundada da veracidade das denúncias, não rejeitando as denúncias de violação de direitos humanos.

Quanto ao Reino Unido, o governo chinês aplicou sanções a 9 cidadãos britânicos que tinham divulgado supostas falsas informações relativas à violação de direitos dos uigures, sendo 5 destes cidadãos deputados. A lista de sanções aplica-se, ainda, ao Tribunal Uigur – um tribunal britânico que investiga as atrocidades cometidas contra os uigures – e o Grupo de Investigação sobre a China. O ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, Dominic Raab, demonstra solidariedade com os sancionados pelo governo chinês comentando “se Pequim quer refutar as alegações sobre abusos de direitos humanos em Xinjiang de forma credível, deve permitir ao Alto Comissário dos Direitos Humanos da ONU acesso total para verificar a verdade”.

Na Europa continental, os parlamentos neerlandês (o primeiro a apresentar a moção formalmente) e lituano também qualificaram os acontecimentos com os uigures em Xinjiang como genocídio, apoiando a iniciativa britânica duma investigação aprofundada à realidade dos campos de detenção.

Face aos recentes avanços do Talibã no Afeganistão, a política externa do país demonstra-se favorável ao governo chinês, do qual o vice-diretor do gabinete político, Abdul Salam Hanafi, caracteriza como uma relação amigável, de respeito e confiança, apesar de Pequim ainda manter princípios de limpeza, neste caso, da religião muçulmana.

E agora?

A resolução desta crise humanitária é abalada pelo princípio de não ingerência em assuntos domésticos das Relações Internacionais – aspeto que a China frequentemente reivindica, de modo a afastar a comunidade internacional da realidade em Xinjiang. No entanto, a exposição de factos saídos dos campos de detenção, as desumanidades que lá se testemunham e a emergente resposta internacional parecem entrar em união para contribuir para a proteção da identidade cultural uigur de eventos similares aos enfrentados pela comunidade judaica no século XX.

Referências Bibliográficas:

OLIVIERI, C. (2021) A China colonial: vozes da diáspora uigur. Fronteiras: Journal of Social, Technological and Environmental Science, 10(1), 94-115. http://periodicos.unievangelica.edu.br/index.php/fronteiras/article/view/4541/3836

XU, V. X., CAVE, D., LEIBOLD, J., MUNRO, K. & RUSER, N., (2020) Uyghurs for sale: ‘Re-education’, forced labour and surveillance beyond Xinjiang. https://www.aspi.org.au/report/uyghurs-sale

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