Memórias de Saigão: Como o sistema da política externa norte-americana repetiu os mesmos erros de há 50 anos

“Salve-se quem puder!

Nas últimas semanas a situação política e militar no Afeganistão tem recebido uma atenção mediática enorme. Tão grande que se pode considerar como o evento internacional mais noticiado desde as eleições norte americanas de 2020 e as suas repercussões nas primeiras semanas de 2021.

Quem tem vindo a acompanhar o desenrolar dos acontecimentos no Afeganistão nos últimos 10 anos não deve, contudo, encarar os acontecimentos do presente com grande choque ou surpresa. A realidade é que já desde o primeiro mandato do Presidente Barack Obama que um cenário mais ou menos parecido com o que estamos hoje a assistir se tinha tornado inevitável.

Os Estados Unidos e os seus aliados internacionais invadiram o país em 2001 com o fim de eliminar a ameaça da Al-Qaeda na região e vingar a tragédia dos ataques de 11 de setembro desse ano. A remoção das forças do regime Talibã do poder fora no momento do início das hostilidades no máximo um objetivo secundário. Nada mais nada menos do que uma forma de conseguir o apoio incondicional das forças da organização militar afegã conhecida como Aliança do Norte.

Apesar de Osama Bin Laden ter escapado para o Paquistão poucos meses depois dos atentados, já em 2002 a rede terrorista no país da Ásia Central já tinha sido destruída enquanto força de combate efetiva. Desde então que o propósito da presença das forças ocidentais no país se tinha tornado bastante incerto.

Nos 18 anos que se seguiram, a missão da Força Internacional de Apoio à Segurança (nome da coligação liderada pela NATO com o aval da ONU) passou de contraterrorismo, para contrainsurgência, nation bulding e até meramente apoio logístico ao exército afegão.

Quatro presidentes depois e esta incerteza só tem vindo a aumentar. Milhares de milhões foram investidos no país para a construção de escolas, hospitais e outras infraestruturas. Entre estas estava o célebre projeto da Ring Road, uma rede de estradas e autoestradas que ligaria todas as principais cidades do país. Projeto que graças a interferência dos Talibã e outras forças locais, assim como falta de manutenção fez com que muitas secções das estradas se deteriorassem (sendo que hoje em dia grande parte desta rede de estradas simplesmente já não existe). (Vox 2018)

Com a incapacidade de pacificar totalmente as forças dos Talibã e o falhanço da sedução dos hearts and minds do povo afegão concluiu-se que a presença da coligação ocidental servia como força estabilizadora. Um mal menor. Um mal necessário. A partir do momento que as forças ocidentais se retirassem o perigo de um retorno do regime Talibã ao poder era bastante provável.

A administração Trump iniciou o diálogo com a liderança das forças extremistas. Dentro do acordo assinado, os Talibã teriam de vedar a entrada de forças terroristas no país e entrar em negociações com o governo central. Em contrapartida o presidente Donald Trump prometera a retirada da maioria das forças norte americanas até ao final do mês de maio. Uma decisão altamente polémica, tendo sido tomada sem consultar os aliados americanos da NATO e até o próprio governo afegão.

Biden herdara um acordo bastante dúbio. Contudo apesar das grandes diferenças políticas e ideológicas com o seu antecessor a sua administração decidira cumprir o acordo.

Enquanto Vice-Presidente, Biden já tinha expressado o seu descontentamento para com a condução do conflito entrando muitas vezes em choque com o próprio Presidente Obama. Biden entendera que dificilmente uma retirada daqui a um mês, um ano ou vinte produziria um resultado diferente. Esta é a realidade que levará 5 mandatos presidências a entender (ou simplesmente até agora nenhum teve a coragem de assumir a responsabilidade de assumir a realidade).

Os soldados do movimento fundamentalista islâmico só tinham de aguardar pelo dia em que o frágil regime de Cabul fosse abandonado pelos seus parceiros internacionais.

Esse dia chegou.



A história repete-se: primeiro como tragédia, em segundo…

Hoje os EUA enfrentam aquele que é possivelmente o maior desastre de política externa da sua história. Possivelmente superior ao fracasso do Vietname, que marcara para sempre uma geração e representou o momento mais negro da Guerra Fria para o povo americano.

Em muito, os acontecimentos que se têm desenrolado no Afeganistão se assemelham com os horrores experienciados no Vietname há mais de 50 anos atrás.

Irei enumerar algumas semelhanças:

-Ambos os conflitos foram caracterizados por uma intervenção militar americana num país subdesenvolvido. Fundamentada e justificada por argumentos dúbios. O escalar da presença americana no Vietname fora justificado pelo incidente do Golfo de Tonquim, onde um pequeno grupo de fragatas do Vietname do Norte atacara um navio americano. A realidade é que este evento serviu meramente como uma “cortina de fumo” para justificar ao Congresso o destacamento de milhares de soldados para o Sudeste Asiático com o fim de combater as ambições globais de Moscovo e Pequim. A intervenção ocidental no Afeganistão fora fundamentada pela a presença de terroristas da Al-Qaeda no país, os orquestradores dos atentados de 2001, e pela cumplicidade dos Talibã para com estes;

-Nos dois conflitos, os EUA encontraram-se a combater uma guerra assimétrica contra um inimigo militarmente muito inferior. Ao mesmo tempo apoiando o desenvolvimento e armamento dos seus aliados na região (na guerra do Vietname era o regime de Saigão do Vietname do Sul, no Afeganistão o Estado Central de Cabul). A expectativa dos líderes americanos era que a esmagadora superioridade americana a nível de recursos e de poder de fogo iria rebalancear decisivamente o equilíbrio em favor das forças pró-ocidentais. Algo que não se veio a comprovar;

-Em ambos os casos, os conflitos vieram a prolongar-se ao longo de vários anos apesar dos dirigentes políticos e militares americanos terem plena noção da impossibilidade de uma vitória militar no conflito;

-Tanto no Vietname como no Afeganistão, as forças americanas e ocidentais acabaram por se retirar, deixando a responsabilidade da manutenção do conflito ao país aliado na região. Tanto em Saigão quanto em Cabul, a sensação de traição e abandono por parte dos americanos era palpável. Tanto os acordos assinados com as forças do Vietname do Norte e com os Talibã não exigiam o seu desarmamento. Como o resultado, ambos os grupos permaneceram prontos para retomar as hostilidades assim que os americanos partissem.

-Em ambos os casos, o regime aliado fora derrotado pouco tempo depois da retirada dos Yankees, não conseguindo oferecer uma defesa realista contra o inimigo. O rápido avanço das forças inimigas também obrigou em ambos os casos uma evacuação apressada e desorganizada de todo o corpo civil, diplomático e militar americano da região e de muitos milhares de locais.

Estes são alguns dos aspetos onde se pode identificar algumas semelhanças. Claro que também não devemos esquecer a diferença de paradigmas entre estes dois eventos. A intervenção americana no Vietname surgiu no contexto da Guerra Fria para travar a proliferação de regimes comunistas no sudeste asiático (receio justificado pela teoria do dominó). A intervenção americana e da NATO no Afeganistão surgiu devido a necessidade da administração de George W. Bush de demonstrar que, apesar de magoado, o poder americano ainda era supremo. Uma demonstração de força.

Nesse aspeto sucederam. Contudo, não deixa de ser peculiar que um país inteiro tenha sido invadido basicamente com o intuito de capturar (ou matar) um único homem. A partir do momento em que a coligação ocidental obterá provas da fuga de Bin Laden do país, o propósito da missão no país tornar-se imediatamente questionável, ou até mesmo desnecessária. (Ott 2021)

A retirada das tropas do Vietname ocorreu maioritariamente devido à impopularidade do conflito e à vontade esmagadora da maioria dos americanos em sair imediatamente de uma guerra para a qual nunca entenderam verdadeiramente as razões para o início do seu envolvimento.

No caso do Afeganistão a altura das grandes revoltas e manifestações contra já terminaram há muito. Muitos americanos já tinham aceite a permanência deste conflito e as causalidades que adivinham dele- a forever war.

É importante relembrar também que em setembro de 2001 a comunidade internacional e o povo americano estavam unidos na necessidade de retaliação após os atentados do 11 de Setembro. Um evento que assinalou a entrada num paradigma tão assustador que por breves momentos até os principais rivais externos da América e do Ocidente estiveram despostos a esquecer as suas diferenças.

20 anos depois, assistimos a uma retirada apressada das forças estrangeiras. As imagens deste momento em tanto invocam as memórias da evacuação de Saigão em 1975 que o próprio Joe Biden fora obrigado a desmistificar esta ideia – “Em nada as duas situações se assemelham” referiu.

No meu entendimento dificilmente os dois cenários poderiam ser mais parecidos… teremos, contudo, de aguardar para descobrir os verdadeiros efeitos a longo prazo destes desenvolvimentos.

Como Marx dizia, “A história repete-se: primeiro como tragédia e em segundo como farsa”

Adeus, Afeganistão. Olá, República Islâmica do Afeganistão.

A intervenção americana no Iraque em 2003, o combate contra o Estado Islâmico na segunda metade da década de 2010, as confusões na Líbia e na Síria, a ascensão dos seus principais rivais geopolíticos (a Federação Russa e a República Popular da China) e o fiasco que se tem desenrolado nas últimas semanas, só conseguiram fragilizar a posição americana no palco internacional enquanto superpotência incumbente.

Os olhos do dragão chinês e do urso russo já começaram a recair sobre este barril de pólvora prestes a implodir. Só resta saber se uma destas potências desafiantes vão procurar ocupar vácuo deixado pela retirada do seu principal rival geopolítico ou simplesmente saborear humilhação internacional do Uncle Sam.

O desastre no Vietname em muito comprometeu a liderança de três presidências americanas – a de Jonhson, Nixon e Carter – obrigando a América a retrair-se internacionalmente para sarar as feridas nacionais. Fora necessária a Revolução Reagan para devolver aos EUA algum do seu espírito. Contudo, até ao fim da Guerra Fria, os americanos optaram maioritariamente pelo uso do soft power nas suas proxy wars contra a ameaça vermelha.

Só na presidência do primeiro Bush e de Clinton que a América voltou a utilizar abertamente o seu poder militar como anteriormente (notável nas intervenções americanas no Panamá, no Iraque e na Somália).

Apesar de ser muito fácil personificar ou personalizar toda esta questão num só homem, num só presidente, acho que não nos devemos esquecer que o que falhou aqui foi todo o aparato de política externa norte americana e complexo industrial militar. Duas instituições que exercem uma tremenda influência em todos os níveis da governação nos Estados Unidos, desde a Câmara dos Representantes até à Sala Oval.

Ainda é muito cedo para dizer se os acontecimentos de hoje poderão vir a condicionar a ainda virgem presidência de Joe Biden e de Kamala Harris. Só com a perspetiva que a história nos dá é que poderemos fazer essa análise. Não obstante, este certamente será relembrado como um dos momentos mais negros da administração Biden.

As imagens de afegãos a agarrarem-se desesperadamente a um avião da força aérea americana enquanto este descola. Os vídeos de mães a entregar os filhos a soldados americanos para os salvarem. Ou até a mera visão da bandeira vermelha, verde e negra emblemática dos últimos 20 anos de experiência democrática a ser derrubada em prol do símbolo dos fundamentalistas certamente não vão ser esquecidas.  

Deixo também esta mensagem ao leitor. Após 20 anos de guerra, milhares de milhões em investimento militar, milhares de feridos e de mortos, o Afeganistão não ficou muito diferente. A única diferença é que o Ocidente deixa para trás um país mais populoso, desenvolvido, militarizado e com um ódio ainda mais aceso aos americanos que os abandonaram.

Podemos dizer que o “Cemitério de Impérios” acabou de ganhar uma nova lápide…

Nobre povo

Nós em Portugal, devido à nossa periferia geográfica e passividade no plano internacional, temos uma certa tendência em menosprezar este tipo de fenómenos internacionais – “O problema é dos outros” ou “os outros que se resolvam”.

Não nos devemos esquecer que Portugal foi favorável à intervenção militar da NATO no país em 2001 e que centenas de combatentes portugueses foram destacados para a zona de combate (tendo dois soldados – o sargento dos Comandos Paulo Roma Pereira e o soldado para-quedista Sérgio Pedrosa – falecido ao serviço do nosso país). (Ferro 2019)

Não estamos totalmente isentos de responsabilidades. 

O desenlace do conflito do Vietname gerou uma das maiores crises de refugiados da nossa história. Veremos se este não será mais um aspeto onde estes dois eventos se assemelham. Se tal acontecer (como muitos anteveem) os países vizinhos, e eventualmente a própria União Europeia, vão ter um grande problema em suas mãos. Todos nós conhecemos as dificuldades que a Europa enfrentou ao longo dos últimos 10 anos com o aumento dos fluxos migratórios para o continente… e as forças que se aproveitaram desta polémica para ganhar mais notoriedade.

Não estamos totalmente isentos das consequências.

Referências:

Council on Foreign Relations. The US war in Afghanistan. 16 de agosto de 2021. https://www.cfr.org/timeline/us-war-afghanistan (acedido em 17 de agosto de 2021).

Cruz, Mariana Teófilo da. “Militares portugueses numa guerra eterna.” Sic Notícias. 19 de fevereiro de 2019. https://sicnoticias.pt/especiais/afeganistao-capital-dos-errantes/2019-02-19-Militares-portugueses-numa-guerra-eterna (acedido em 18 de agosto de 2021).

Ferro, Carlos. “Atentados, tiroteios e acidentes. O que enfrentam os militares nacionais nas missões de paz.” Diário de Notícias. 14 de junho de 2019. https://www.dn.pt/poder/atentados-tiroteios-e-acidentes-o-que-enfrentam-os-militares-nacionais-nas-missoes-de-paz-11011638.html (acedido em 17 de agosto de 2021).

Ott, Marvin. “Afghanistan: Echoes of Vietnam?” Wilson Center. 13 de julho de 2021. https://www.wilsoncenter.org/blog-post/afghanistan-echoes-vietnam (acedido em 16 de agosto de 2021).

The Economist. “Afghanistan: why the Taliban can’t be defeated | The Economist.” Youtube. 20 de fevereiro de 2020. https://www.youtube.com/watch?v=sEtYN70okug (acedido em 17 de agosto de 2021).

Vox. “How the US failed to rebuild Afghanistan.” Youtube. 11 de janeiro de 2018. https://www.youtube.com/watch?v=XKVDXbIpW9Q (acedido em 18 de agosto de 2021).

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