Andreia Soares e Castro
Professora Auxiliar do ISCSP – Universidade de Lisboa
No passado dia 12 de Março de 2021 tive a honra de introduzir e moderar o debate sobre a “Europa depois de Merkel: o legado de Angela Merkel na Europa e na Alemanha”, uma iniciativa organizada pelo Núcleo de Estudantes de Relações Internacionais do ISCSP. Este texto reúne os argumentos que provam a oportunidade do evento, evidenciando alguns tópicos de reflexão sobre o legado de Merkel quer na Europa, entenda-se União Europeia (UE), quer na Alemanha, bem como perspetivar a UE pós-Merkel.
O legado de Merkel
Em Novembro de 2005, Angela Merkel tornava-se na primeira mulher eleita para ser chanceler (chefe de governo) federal da Alemanha. Tinha então 51 anos de idade. Era já líder do partido de centro-direita União Democrata-Cristã (CDU). Foi-o desde 2000 até Outubro de 2018, data em que anunciou que não concorreria mais a líder do partido, nem que se recandidataria a chanceler nas eleições legislativas de Setembro de 2021.
Angela Merkel está, desde 2005, há quase 16 anos à frente do governo alemão, tendo ganhado quatro eleições sucessivas. Merkel é, assim, a líder mais antiga na UE, e, por consequência, a líder com mais experiência nos processos de decisão ao nível europeu, particularmente no âmbito do Conselho Europeu, que reúne os chefes de Estado e governo dos 27, onde tem assento.
Entende-se, pois, a discussão académica sobre quem vai agora assumir o lugar de Angela Merkel, nomeadamente o papel de procurar a união dos Estados-membros, conseguir novos compromissos e liderar nas futuras crises. Outros defendem que a questão não está tanto em quem a irá substituir, mas no vazio de poder que a sua saída deixará na UE. Subjacente estão capacidades políticas ímpares, grande capacidade de liderança, de persuasão e de construção de compromissos e acordos entre os Estados-membros, demonstradas por Angela Merkel nas diferentes crises que o projeto europeu enfrentou desde 2005 (das dívidas soberanas, dos refugiados, do «Brexit» e da COVID-19).
O papel da Alemanha no projeto europeu
O legado de Merkel evoca também o papel da Alemanha no projeto europeu. Ora falar sobre este papel é sublinhar a importância do contexto político e da história na política externa. De facto, a história não se pode apagar e não deve ser esquecida, e consequentemente influencia sempre a política externa:
“History indelibly influences foreign policy. Consciously or unconsciously, government officials rely on their understanding of the past in seeking to address what is happening today; they seek to render new and complex issues more legible by drawing insights from what has come before (…) One cannot make policy solely on the basis of historical knowledge, of course, but only a fool would ignore what history has to offer”.
Portanto, quando refletimos sobre o papel e as decisões de Merkel, a sua liderança, a sua capacidade de construir consensos, de alcançar acordos e novos compromissos, a mediação, a gestão de crises, tudo deve ser contextualizado e interpretado dentro de um contexto político e histórico específico, que levou à definição da política externa alemã e dos principais princípios em que assenta: uma Europa soberana, a parceria transatlântica, o apoio à paz e segurança, a promoção da democracia e dos direitos humanos e o compromisso com o multilateralismo.
Cabe aqui sublinhar a importância da memória histórica na definição da política externa. No caso em concreto, a história brutal da Alemanha ainda desempenha hoje um grande papel na política externa alemã. O Holocausto e o passado sombrio nazi, bem como o medo da hegemonia alemã, tiveram (e têm ainda hoje) consequências no sentido de responsabilidade da Alemanha e no facto de o país nunca ter procurado um papel dominante na Europa ou fora dela. Se tal foi claro no pós-guerra, após a reunificação, o objetivo foi sempre ser “uma Alemanha europeia, não uma Europa alemã”.
Estado-membro fundador do projeto europeu, o objetivo da Alemanha neste projeto tem sido sempre, particularmente nas últimas décadas, criar uma União mais forte, coesa e profunda. Ao mesmo tempo que procura promover os seus interesses económicos e de segurança nacional, a Alemanha está consciente da sua responsabilidade particular em construir compromissos com os seus vizinhos europeus, ao mesmo tempo que expia o seu passado. As palavras de Angela Merkel no dia seguinte ao referendo britânico, que ditou a decisão de saída do Reino Unido da UE, são, neste sentido, elucidativas. Merkel disse que, por causa da sua história, a Alemanha tem “um interesse particular e uma responsabilidade particular” em fazer da unidade europeia um sucesso.
O papel dos líderes no projeto europeu
Falar sobre o legado de Merkel é evocar também a importância dos líderes políticos em geral e dos líderes políticos nacionais no caso do projeto europeu. Isto porque a liderança política e a integração europeia andam de mãos dadas. O projeto europeu foi sempre e continua a ser um projeto inspirado e liderado pelas elites políticas europeias com uma fraca participação dos respetivos cidadãos.
As democracias precisam de liderança para funcionarem e implementarem ações necessárias e eficazes, especialmente em tempos de crise. Historicamente, é reconhecida a importância dos pais fundadores do projeto europeu; a importância de líderes nacionais como Charles de Gaulle, Konrad Adenauer, Margaret Thatcher, François Mitterrand, Helmut Kohl, entre muitos outros; ou ainda de líderes das instituições da UE, como o ex-Presidente da Comissão Europeia, Jacques Delors, ou do Parlamento Europeu, Simone Weil.
É ainda importante sublinhar a importância e liderança do eixo franco-alemão, que foi sempre impulsionador do projeto europeu, estando associado ao seu reforço e desenvolvimento. Recorde-se que foi a reconciliação dos velhos rivais Alemanha e França que levou à construção em 1952 de “um projeto inigualável, que tem funcionado enquanto modelo de paz (…) e superação da natureza anárquica das relações entre os Estados, substituindo-as por uma rede de direitos e obrigações assentes no direito, na partilha de soberania e na procura de soluções coletivas para os problemas comuns”.
Mais tarde, em 22 de janeiro de 1963, o Presidente francês, Charles de Gaulle, e o Chanceler alemão, Konrad Adenauer, assinaram em Paris o Tratado de Amizade Franco-Alemã (Tratado do Eliseu). As duplas políticas que vieram a seguir – Schmidt-Giscard d’Estaing, Kohl-Mitterrand e Schröder-Chirac – aproveitaram as bases lançadas pelo tratado e transformaram os dois países em precursores da união no continente. Esta amizade foi renovada pelo Tratado de Aachen, em janeiro de 2019, comprometendo os dois países a aprofundarem a cooperação e a integração num sinal claro também contra o crescente populismo e nacionalismo na Europa.
Também perante a crise pandémica sem precedentes, o eixo franco-alemão assumiu, uma vez mais, este papel de liderança. Reconhecendo que, para que a saída da crise fosse eficaz, a resposta tinha de ser coletiva, Angela Merkel e Emmanuel Macron propuseram um conjunto de medidas, onde estava incluído um Fundo de Recuperação para a Europa.
Mas se as relações e o impulso franco-alemão são um motor da integração europeia, por si só não são suficientes para resolver os problemas da UE. Há que conseguir envolver os outros Estados-membros. Também neste caso, e após uma maratona negocial de vários dias, o Conselho Europeu extraordinário, de 17 a 21 de julho de 2020, chegou a acordo sobre o Plano de Recuperação e sobre o orçamento para 2021-2027, sendo possível acomodar diferentes interesses e ultrapassar as divergências, não sem cedências e compromissos, provando “a enorme resiliência e adaptabilidade da UE”, bem como a atualidade do método dos «pequenos passos». De facto, o projeto europeu “tem sido construído gradualmente, por necessidade, à medida dos compromissos possíveis e das vicissitudes, quer internas, quer externas”.
Tal como os líderes políticos que foram citados anteriormente, não é de somenos sublinhar que Angela Merkel é a líder do maior país da UE em termos de população e peso económico, pelo que (naturalmente) emergiu e consagrou-se, ao longo de quase 16 anos, como a líder mais forte e importante da Europa. De facto, Merkel é internacionalmente conhecida, reconhecida e respeitada, tendo sido eleita, em Dezembro de 2020, pelo 10º ano consecutivo, a mulher mais poderosa do mundo no ranking elaborado anualmente pela revista norte-americana Forbes. Foi também eleita a Personalidade do Ano 2015 pela revista norte-americana Time e descrita como a “líder do mundo livre”.
Neste percurso, é importante destacar algumas características pessoais de Angela Merkel, como o seu ethos cristão, filha de um pastor da Igreja protestante; que cresceu na Alemanha Oriental (oficialmente República Democrática Alemã) comunista; que estudou ciências naturais, e que trabalhou em estreita colaboração com o seu mentor, o chanceler Helmut Kohl.
Nestes quase 16 anos, a liderança de Angela Merkel e a sua capacidade de usar a força política e económica incontestáveis da Alemanha juntamente com as suas competências pessoais permitiram que a UE conseguisse gerir ou ultrapassar: a crise das dívidas soberanas que se seguiu ao colapso do mercado financeiro global de 2008-2009; a crise migratória que se seguiu à guerra civil na Síria, cujo pico ocorreu em 2015; relações cada vez mais conturbadas que dividem o norte da Europa do sul e o leste do oeste; relações complexas com os Estados Unidos (Donald Trump) e a China; o “Brexit” e a negociação de um novo relacionamento com o Reino Unido; a resposta à pandemia da COVID-19.
Claro que Angela Merkel não fez tudo sozinha. Mas como líder do Estado-membro mais influente da UE, e em virtude da longevidade no poder, da consequente experiência e do respeito internacional que alcançou, provou ser indispensável para a continuidade da UE. Ao nível doméstico, a situação económica na Alemanha, mesmo com a crise financeira de 2008, foi-lhe favorável eleitoralmente, uma vez que o país continuou a crescer mais do que outros países. Apesar da sua popularidade na Alemanha ter oscilado no decorrer dos quatro mandatos, Merkel deixa o poder com aprovação recorde, graças à gestão da pandemia.
Assim, também se perspetiva que Angela Merkel será estudada como um exemplo de liderança política no caso da integração europeia. A sua política de portas abertas em 2015 para o acolhimento de um milhão de refugiados da Síria e do Iraque; a autorização de programas de resgate para os países do sul da Europa, quebrando a regra do “no bailout” ou da cláusula da proibição de salvamento (artigo 125º, n.º 1 do TFUE); a decisão em 2011, após o acidente nuclear em Fukushima, no Japão, de transformar a matriz energética alemã, apostando nas energias renováveis e eliminando a energia nuclear e, mais recentemente, a gestão da pandemia, designadamente a decisão de acabar com o sacrossanto saldo fiscal para permitir maiores gastos públicos para lidar com a crise pandémica são apenas alguns dos muitos exemplos que demonstram o estilo de liderança e as habilidades políticas de Angela Merkel.
A incerteza que as eleições nacionais suscitam e os impactos que geram na UE
Falar sobre a UE pós-Merkel é recordar que a UE integra Estados, cujos governos são democraticamente eleitos, segundo regras e calendários eleitorais nacionais, mas com claras consequências ao nível da tomada de decisão coletiva e dos processos de formulação de políticas da UE. De facto, tal como os nºs 1 e 2 do artigo 10º do Tratado da União Europeia referem:
“o funcionamento da União baseia-se na democracia representativa” e “os Estados-Membros estão representados no Conselho Europeu pelo respetivo Chefe de Estado ou de Governo e no Conselho pelos respetivos Governos, [sendo] democraticamente responsáveis, quer perante os respetivos parlamentos nacionais, quer perante os seus cidadãos”.
Trata-se, portanto, sempre da escolha de representantes, que vincularão os respetivos países à UE, remetendo para a importância de cada eleição nacional, sobretudo nos grandes países da UE ou quando está em causa o crescimento de partidos populistas e de extrema-direita, anti-UE, que colocam enormes desafios ao projeto europeu. As eleições de setembro de 2021 na Alemanha, assim como as eleições presidenciais francesas em 2022, são exemplos de eleições que terão impactos na UE.
É por isso que face ao populismo e à emergência de partidos populistas e de extrema-direita na Alemanha e noutras partes da Europa é urgente o fortalecimento dos partidos políticos tradicionais, do centro, partidos com uma longa tradição europeia, para a Europa não ficar “cheia de medo” que cada eleição marque a “implosão europeia”, não sendo “aceitável que o normal em democracia, que são as eleições, passe a representar o pavor dos políticos e dos partidos”.
Assim, é da maior importância que o eleitorado conheça a diferença entre partidos políticos, que continuam o esforço para construir a UE, e aqueles que querem destruí-la e voltar a um passado nacionalista, ao unilateralismo e ao fechamento. Só assim a continuidade da UE e dos seus múltiplos benefícios, a começar pela paz, segurança, liberdade e direitos fundamentais na Europa, serão garantidos.
Independentemente da escolha dos eleitores alemães, quem suceder a Merkel terá necessariamente que enfrentar os mesmos problemas e desafios da UE de hoje, assim como outros novos. Desde logo, a implementação do Plano de Recuperação para a Europa, que servirá para apoiar a necessária transição ecológica e digital; o reforço das relações transatlânticas; as relações complexas com a Rússia e com a China; o debate sobre o futuro da UE e sobre o seu papel no mundo, entre muitas outras questões, que estão na agenda política europeia. Ao nível doméstico, há autores que defendem que a Alemanha deverá ter uma postura mais assertiva na vida internacional, acabando com a sua inércia em matéria de defesa e segurança, que se explica pelo seu passado e pela escolha do paradigma de “potência civil”.
Por outro lado, é expectável que as decisões estruturais na UE sejam adiadas até ser confirmada a escolha eleitoral, bem como que quer políticos nacionais quer tecnocratas em Bruxelas também queiram esperar para ver quem estará no comando do governo alemão. Acresce que após a eleição, é provável que exista um período de incerteza de semanas (ou meses) até ser alcançada a formação de um governo de coligação, o que originará mais atrasos no processo de formulação de políticas da UE.
Em suma, independentemente da escolha, a Alemanha, a principal força motriz do euro e uma âncora para a economia europeia, vai continuar a ser um ator central na UE, sendo do seu interesse agir por meio da UE, agir em conjunto com os seus parceiros e em conjunto com as organizações internacionais. Espera-se ainda que, em conjunto com a França no âmbito da parceria franco-alemã, continue a seguir trabalhando em prol do aprofundamento da UE. Fundamentalmente, espera-se que a Alemanha continue comprometida com o sucesso do projeto europeu, confirmando uma Alemanha europeia e não uma Europa alemã.
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