Texto redigido por: Hugo Neves
Homo homini lupus (provérbio latim)
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Introdução:
Xinjiang, ou Turquestão Oriental, é uma região autónoma da República Popular da China (RPC) profundamente marcada por movimentos separatistas e afectada por vários incidentes de terrorismo de 2007 a 2017. Após dois incidentes particularmente graves, do motim de 2009 e dos ataques terroristas de 2014 na capital regional Ürümqi, o Partido Comunista Chinês (PCC) implementou a campanha “golpe forte contra o terrorismo violento”, cujas medidas extremamente restritivas para os cidadãos uigures e outras minorias étnicas — visando “erradicar vírus ideológicos“, segundo a Human Rights Watch (HRW) —, serão aprofundadas neste artigo. Para a RPC, Xinjiang é uma região fundamental no âmbito geoestratégico da Belt and Road Initiative (BRI), de transição entre a China Oriental e a Europa (ver fig. 1), assim como para a exportação de algodão (ca. 80% da produção nacional e 20% do mundo), gás natural (ca. 1/3 nacional), carvão (ca. 40% nacional) e petróleo (ca. 40% nacional). É ainda a maior região da RPC, embora apenas cerca de 10% da sua área seja própria para habitar.
Como o acesso de jornalistas à região é limitado e a informação sobre as medidas do PCC no combate ao terrorismo é filtrada pela censura (a RPC foi classificada entre os quatro piores países em termos de liberdade de imprensa no Índice de Liberdade de Imprensa de 2021), as suas repercussões são ainda pouco claras. No entanto, a ONU considera que mais de um milhão de uigures estão arbitrariamente detidos em campos de detenção especiais, enquanto várias testemunhas, ONGs e governos de numerosos países acusaram o PCC de cometer um conjunto de violações graves de direitos humanos, seguidamente enumeradas:
- Perseguição a jornalistas
- Vigilância permanente da população
- Proibições culturais e religiosas
- Educação patriótica e trabalho forçado
- Separação de familiares, incluindo crianças
- Esterilização forçada
- Tortura e violação
- Genocídio cultural

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Sobre as acusações:
Em Xinjiang, jornalistas internacionais são confrontados com vários métodos de pressão contra observações críticas ao PCC: perseguições recorrentes por indivíduos não identificados; restrições de acesso a locais de interesse ou em falar com uigures sobre as acusações supracitadas, assim como a relutância de alguns entrevistados em responder por medo de represálias; intimidação e expulsão de jornalistas pelas autoridades locais. Os uigures estão sujeitos a um sistema de vigilância apertado, que inclui postos de controlo, câmeras com reconhecimento facial e um aumento exponencial dos seguranças no espaço público nos últimos anos. A região parece estar a servir como laboratório para a evolução do sistema no resto do país, um “Estado de vigilância total” (ou Estado policial) cujo controlo é complementado com o “sistema de crédito social” e a aplicação digital “plataforma integrada de operações conjuntas” (IJOP), utilizada pela polícia para armazenar dados de indivíduos que sejam considerados uma ameaça. Segundo a HRW, este sistema viola direitos internacionalmente garantidos de privacidade, presunção de inocência até prova em contrário, liberdade de expressão e religião, assim como liberdade de associação e circulação.
Outra acusação é de repressão da identidade cultural e religiosa dos uigures e de outras minorias étnicas. Os cidadãos com menos de 18 anos estão proibidos de assistir a cerimónias religiosas em mesquitas e o Corão tem de ser aprovado e filtrado pelo PCC; imagens do rosto de Xi Jinping aparecem em várias mesquitas, contra a tradição religiosa uigur; o hijab e as barbas longas são proibidas em algumas cidades, assim como o jejum e o ensino segundo a tradição uigur e islâmica; algumas escolas não podem ensinar a língua uigur e um grande número de mesquitas e cemitérios foram destruídos ou fechados. Além da repressão da indiossincracia, desde a sua conquista por Mao Zedong em 1949, sucessivas políticas promotoras de imigração da população de étnia han para Xinjiang por parte do governo resultaram no seu aumento de 6% para 41% em 2020, enquanto os uigures, 83% em 1949, passaram a constituir apenas 46% da sua população.
Em Xinjiang, descrita numa investigação da ABC Four Corners como a “maior prisão aberta do mundo“, os uigures estão também sujeitos a detenções arbitrárias que resultam no seu transporte para “campos de reeducação” ou “centros de treino vocacional”, nos quais a formação se baseia na indoctrinação ideológica e patriótica. Numa análise mais profunda, o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ) e o New York Times (NYT) afirmam ter adquirido documentos do PCC (designados China Cables e Xinjiang Papers, respectivamente) que provam a existência de detenções involuntárias e condições desumanas nos referidos campos, contrariando a versão do governo de estes se tratarem de uma mera ferramenta para a luta contra o terrorismo e pobreza. Inicialmente os oficiais chineses chamaram a estas notícias “fake news“, tal como tinham negado a existência dos campos, no entanto, confirmaram mais tarde a sua veracidade, embora continuem a acusar os jornalistas de sensacionalizarem o seu conteúdo.

Fonte: East Turkistan National Awakening Movement, Novembro 2019.
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A primeira secção dos China Cables descreve medidas destinadas a evitar a fuga dos seus “alunos” — envolvendo polícias, portas encerradas à chave e vigilância por câmeras. Os documentos descrevem também como deve proceder a campanha de relações públicas para Xinjiang e como os porta-vozes da RPC devem descrever estes “centros de treino vocacionais”, incluindo um guia para os respectivos procedimentos. Os documentos também descortinam um sistema de avaliação interno que inclui sanções como a proibição de contactar membros da família. Bethany Allen-Ebrahimian do ISIJ, explica que o “sistema de pontos usado nos campos” com o qual “os prisioneiros são avaliados segundo o seu comportamento”, inclui a aprendizagem da língua chinesa (mandarim), da ideologia comunista e da lei nacional. Para Sophie Richardson do HRW, este sistema servirá para “reorganizar o pensamento das pessoas” e o que elas podem pensar ou dizer.
Os documentos dos Xinjiang Papers, por sua vez, mostram que Xi Jinping declarou num discurso: “nós temos que ser tão duros quanto eles” e “não devemos mostrar absolutamente nenhuma misericórdia”. Uma directiva expressa preocupação com uma “possibilidade séria” dos alunos criarem “turbulência” depois de saberem o que havia acontecido aos seus parentes, aconselhando funcionários dos campos a dizerem aos seus alunos que “não têm absolutamente nenhuma necessidade de se preocupar” com os seus parentes que desapareceram, podendo em certas ocasiões permitir videochamadas. Estabelece, ao mesmo tempo, que os alunos e as suas famílias devem “cumprir as leis e regulamentos do Estado e não acreditar ou espalhar rumores”, prosseguindo: “o seu pensamento foi infectado por pensamentos pouco saudáveis” e “A liberdade é apenas possível quando este vírus no seu pensamento for erradicado e eles estiverem de boa saúde.”
Noutra directiva de Junho de 2017 assinada por Zhu Hailun, então oficial de segurança de Xinjiang, no qual ele mencionou ataques terroristas na Grã-Bretanha como “um aviso e uma lição para nós”, atribuiu a culpa à “ênfase excessiva nos direitos humanos” do governo britânico, acima da segurança, assim como ao controlo inadequado sobre a “propagação do extremismo na internet e na sociedade.” Outro oficial, Wang Yongzhi, ordenou a libertação de mais de 7000 detidos, justificando-se: “agi selectivamente e fiz os meus próprios ajustes, acreditando que deter tantas pessoas iria conscientemente criar conflitos e aprofundar o ressentimento.” Em resultado, o PCC anunciou que ele seria investigado por “desobedecer gravemente à estratégia da liderança central do partido para governar Xinjiang”. O relatório interno, contudo, revela que o seu maior pecado político foi o de não “arrebanhar todos os que deveriam ser presos”. De resto, estes campos de reeducação têm uma característica distinta: estão cercados por muros com arame farpado e abrigam postos de controlo, como torres de vigia (ver fig. 3).

muros com arame farpado. Fonte: Australian Strategic Policy Institute, Março 2020
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Quanto ao trabalho forçado, num relatório para o Centre for Global Policy, o especialista em política étnica da China Adrian Zenz afirma: “as minorias em trabalho assalariado em tempo integral tornaram-se uma pedra angular do projeto de reengenharia social coerciva do Estado”; em resposta, Pequim defende que o trabalho é voluntário. Outro relatório do Australian Strategic Policy Institute (ASPI) implica pelo menos 82 grandes marcas internacionais na cadeia de distribuição de algodão de Xinjiang. Segundo o estudo, a RPC mobilizou a transferência massiva de uigures e outras minorias étnicas de Xinjiang para fábricas noutras regiões da RPC, estimando cerca de 80,000 de transferidos entre 2017 e 2019, em grande parte vindos directamente dos campos de reeducação após a sua graduação. Documentos do governo demonstram que a esses trabalhadores são atribuídos encarregados e que têm liberdade de movimento muito limitada. Fora do horário de trabalho, são obrigados a ter aulas de mandarim, “educação patriótica” e treino ideológico, sob vigilância constante e proibição de actividades religiosas.
Nas fábricas fora de Xinjiang esses trabalhadores são chamados de “mão de obra excedente” (富余 劳动力) ou “mão de obra atingida pela pobreza” (贫困 劳动力). Um documento do governo provincial descreve um banco de dados central desenvolvido pelo Departamento de Recursos Humanos e Assuntos Sociais de Xinjiang que regista os detalhes médicos, ideológicos e de emprego de cada trabalhador. Algumas empresas chinesas e funcionários do governo, por sua vez, orgulham-se de poder alterar a perspectiva ideológica dos seus trabalhadores uigures e transformá-los em “cidadãos modernos”, “mais fisicamente atraentes”, que aprendem a “tomar banho diariamente”. Além disso, anúncios online de venda de trabalhadores que a ASPI e a Sky News encontraram no motor de busca Baidu parecem corroborar esses detalhes sobre o trabalho forçado em fábricas.

um retrato de Xi Jinping na parede. Fonte: Australian Strategic Policy Institute, Março 2020
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Um estudo de caso da ASPI descreve a abertura de uma escola nocturna na fábrica Taekwang em Junho de 2019 (ver fig. 4), na qual um funcionário do governo do escritório local do Departamento de Trabalho da Frente Unida (UFWD) convocou os trabalhadores uigures a fortalecer sua identificação com o Estado e a nação. A escola é chamada de “Semente de Romã”, em referência a um discurso de Xi Jinping no qual ele disse que cada grupo étnico se deve unir fortemente como as sementes de uma romã. Com efeito, o UFWD não só mantém reuniões regulares com as empresas de Shandong que contratam uigures para discutir as “tendências ideológicas dos trabalhadores e quaisquer questões que tenham surgido”, como tem representantes dentro de fábricas para relatar diariamente os pensamentos dos trabalhadores uigures e gerir quaisquer disputas.
Mais recentemente, várias marcas internacionais que utilizam algodão de Xinjiang, como a Nike e a H&M, foram boicotadas na RPC por terem feito comentários negativos acerca do trabalho forçado na região, iniciativa nacionalista que começou com uma declaração da Liga da Juventude Comunista da RPC. O boicote resultou num declínio nas vendas das marcas no país e na sua censura do seu logo pelo PCC na internet e TV. Pequim também respondeu através dos seus media estatais, não só reprimendando as empresas transnacionais por se envolverem na sua política interna, como através da criação de documentários e filmes que transmitem uma imagem positiva de coesão étnica e de resposta dura ao terrorismo.

Fonte: Center for Global Policy, Dezembro 2020.
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Da lista de 11 indicadores de trabalho forçado da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a ASPI identifica no caso dos uigures em Xinjiang: intimidações e ameaças, como a ameaça de detenção arbitrária; monitorização por pessoal de segurança e ferramentas de vigilância digital; colocação em posição de dependência e vulnerabilidade, como por ameaças a familiares em Xinjiang; liberdade de movimento restrita, a exemplo das fábricas cercadas por arame farpado e sob vigilância de alta tecnologia; isolamento, como viver em dormitórios segregados e ser transportado em comboios exclusivos; condições de trabalho abusivas, por postos de guarda policial em fábricas, gestão de “estilo militar” e proibição de práticas religiosas; horas excessivas, como aulas de mandarim depois do trabalho e sessões de doutrinação política que fazem parte das atribuições de trabalho.
Adicionalmente, a separação de familiares dos detidos inclui coerção de familiares a fim de evitar o testemunho de uigures fora do território nacional, medidas que incentivam à denúncia de actividades anti-PCC por familiares e espionagem eléctronica pelo governo. Estas separações afectam principalmente as crianças, como descreve a CNN numa reportagem com vários exemplos. Outra reportagem, da Vice News e HBO, exibe imagens de um infantário cercado por arame farpado. Já segundo a Amnesty International, uigures exilados em vários países do mundo descobriram que os seus filhos foram enviados para “campos de órfãos”. Porém, os media estatais da RPC defendem a abordagem como meio necessário, referindo a política comum do “one child policy” (hoje expandida para 2 filhos) e a influência negativa dos media ocidentais na cobertura das políticas do PCC. Os oficiais da RPC defendem mesmo que o bem-estar e felicidade de todos os grupos étnicos aumentaram.
Por fim, imagens de satélite indicam que a construção destes campos começou em 2014, que pode estar ainda em expansão e que os mesmos sistemas de controlo começaram aparentemente a ser utilizados na região do Tibete. Alguns testemunhos descrevem o uso de tortura e violação neste campos e outras relatam medidas particularmente violentas contra mulheres — médicos americanos confirmaram a esterilização forçada de algumas mulheres uigures e algumas testemunhas dizem ter recebido um tratamento involuntário de disrupção menstrual. Por outro lado, as autoridades de Xinjiang admitem ter havido uma descida significativa de nascimentos de uigures na região, mas que não se deve a esterilização forçada e sim a esterilização voluntária. Em suma, o conjunto das medidas atrás enumeradas tem sido comparado, assim como a pesquisa de Adrian Zenz indica, a “genocídio cultural”.

com a escravatura nos EUA, em resposta às acusações de actual trabalho forçado na RPC. Fonte: Ministério
de Negócios Estrangeiros da RPC, Março 2021.
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Resposta internacional:
Os membros ocidentais do Conselho de Segurança da ONU e a Alemanha questionaram a RPC sobre os campos de detenção e as alegações relacionadas. O senado dos EUA, por sua vez, passou numa rara decisão bipartidária o Uyghur Human Rights Policy Act, em condenação ao estado dos direitos humanos em Xinjiang. Líderes de países como o Reino Unido também denunciaram a situação: os seus primeiro-ministro Boris Johnson e Secretário dos Negócios Estrangeiros criticaram o posicionamento de Pequim e aplicaram sanções pela Lei Glogal Magnitsky devido às violações descritas, em conjunto com a União Europeia, EUA e Canadá. Outros 45 países defenderam a RPC, em resposta à lista de 39 países de posição oposta. Em sua defesa, a primeira argumenta que os ataques terroristas desapareceram. Outra resposta recorrente às acusações em causa é a deflecção por equivalência moral aos EUA, mencionando problemas sociais do presente e do passado (ver fig. 6) do rival político, ao mesmo tempo que critica intromissões nas suas questões internas. Mais além disso, Pequim passou a defender que a definição de direitos humanos dos ocidentais não devia condicionar a norma internacional. Entrementes, António Guterres garantiu que a ONU está em negociações com a RPC para organizar uma investigação às alegações.
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Conclusão:
Apesar dos problemas de segurança que assolam Xinjiang, há um factor crucial com o qual comunidade internacional se deve debater numa primeira análise: a RPC confunde inequivocamente o crime de terrorismo com o separatismo não violento — declarou guerra às “três forças” (separatismo, extremismo e terrorismo) —, violando assim a liberdade de pensamento, de consciência e de religião dos uigures, que são direitos humanos fundamentais consagrados no art. 18º da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU. Quanto à incerteza que permanece em muitos actores do sistema internacional em relação às acusações tratadas neste artigo, cabe aos media internacionais elevar este assunto a uma maior notoriedade para que possa ser discutido com mais claridade. Um terceiro aspecto no futuro de Xinjiang é a possibilidade de investigar as acusações por uma agência internacional imparcial, não obstante a crescente influência económica da RPC via BRI, nomeadamente devido à rota estratégica do Corredor Económico China-Ásia Central-Ásia Ocidental (CCAWEC). A questão de Xinjiang poderá ter um papel central no futuro da ordem internacional, que enfrenta uma oposição entre uma visão autoritária de regimes como a RPC e uma visão liberal democrata na qual a censura é evitada em favor da transparência. Por fim, verifique-se que Pequim boicotou a 93º edição dos Óscares, impossibilitando os seus cidadãos de assistirem ao espectáculo, devido a comentários negativos sobre o regime pela realizadora chinesa de um dos filmes favoritos a vencer o prémio de melhor filme (Nomadland) e à nomeação de um documentário (Do Not Split), por também criticar o regime. Esta medida “proteccionista” revela a esterilidade criativa dos “wolf warriors” e a sua oposição clara ao julgamento individual que Lewis Carrol propôs em Alice no País das Maravilhas, quando escreveu: “Tudo tem uma moral, se tu a conseguires encontrar”.
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