Entre a Segurança e a Liberdade – a Lei de Segurança Nacional de Hong Kong

Texto redigido por: Hugo Neves

“Alguém deve ter mentido sobre Joseph K., ele sabia que não tinha feito nada de errado, contudo, numa manhã, ele foi preso” em O Processo, Franz Kafka escreveu sobre um processo burocrático cujos contornos são de tal forma obscuros e ambíguos, que a sua personagem principal é assaltada por uma sensação de estranheza latente e de total impotência. Um absurdo kafkiano semelhante assaltou o movimento democrático de Hong Kong em 30 de Junho de 2020, quando foi promulgada pelo Comité Permanente Chinês do Congresso Nacional do Povo a Lei de Segurança Nacional (NSL), ao invés de o ser pelo Conselho Legislativo de Hong Kong. O objectivo da decisão anunciado por Pequim foi o de restaurar a ordem e segurança desta região administrativa especial (RAE), assim como de manter a soberania nesse território, após meses de protestos pró-democracia que em algumas instâncias recorreram à violência e destruição de propriedade. Num contexto mais abrangente, esta ex-colónia britânica (1841 a 1997) representa ainda hoje – a par de Taiwan, Japão e Coreia do Sul –, a fronteira cultural e política do Pacífico entre o Ocidente e a República Popular da China (RPC); no entanto, apesar desta última mencionar consistentemente em comunicações oficiais a importância do princípio fundamental “um país, dois sistemas” da Declaração Conjunta Sino-britânica, decidiu impor esta nova lei, numa deriva autoritária que não respeita nem a Declaração, nem a Lei Básica da RAE (a sua mini-Constituição). A NSL surge também num contexto de pandemia e insegurança económica e social, em que a restauração da ordem e segurança são facilmente evocadas como a solução necessária para os problemas supracitados.

Apesar de alguma perda recente de relevância de Hong Kong, um dos centros financeiros mais importantes do mundo, perante o surgimento de outros grandes centros industriais na China, este mantém o importante estatuto de portal da RPC para a economia mundial. Durante décadas, os seus habitantes puderam manifestar-se pacificamente pelos seus ideias políticos, enquanto a RAE gozava de alguma autonomia política, judicial e dos seus media; no entanto, o seu chefe executivo era (e ainda é) nomeado por Pequim. Os protestos pacíficos por um sistema político mais próximo do sufrágio universal cresceram em Março de 2019, quando a chefe executiva Carrie Lam propôs uma lei que possibilitaria a extradição para o continente. Foi então que a resposta da polícia local se tornou mais violenta, assim como os protestos; caos esse que culminaria na invasão do Conselho Legislativo de Hong Kong (LEGCO) por manifestantes, dando origem à sua maior crise política desde a independência em relação à Grã-Bretanha. Acrescendo à tensão, as eleições locais de 24 de Novembro de 2019 registaram um recorde de participação e representaram uma vitória redonda do movimento pró-democracia. Em resposta ao desenvolver da situação e à “interferência estrangeira”, a NSL estipulou como crimes:  secessão, subversão, terrorismo e conluio com forças estrangeiras. Ao mesmo tempo, Pequim criou a Agência de Segurança Nacional, um novo comité chefiado pelo líder executivo de Hong Kong que assegura a execução da NSL. Esta agência não está sujeita a revisão de nenhuma instituição ou organização independente e prevê também a contribuição de um conselheiro de segurança nacional do governo central da RPC. Por sua vez, o governo central passou também a poder ordenar a escuta de chamadas, exigir a entrega de documentos de viagem a suspeitos, multar empresas e suspender as suas licenças. Quanto aos seus efeitos, a lei afectou sobretudo três sectores da RAE: política, educação e meios de comunicação.

Na política, as consequências da lei incluem a proibição de manifestações anti-Pequim, nomeadamente de cânticos e slogans a favor da independência de Hong Kong ou da exibição de bandeiras pró-independência – violações da lei por subversão que, no máximo, resultam num castigo de pena de prisão perpétua. Como exemplo, em Agosto de 2020, na ocasião de uma vigília anual para relembrar as vítimas do massacre da Praça de Tianmen (1989), mais de 20 activistas foram detidos quando contrariaram a sua proibição em ano de pandemia e para contornar estas proibições, alguns manifestantes passariam a exibir cartazes em branco. Ironicamente, a NSL também permite, em alguns casos, extraditar acusados para o continente, concretizando as alterações legislativas que motivaram inicialmente os protestos de 2019. Por fim, mais de 90 pessoas já foram presas por motivos políticos – 53 activistas e políticos, por terem participado na organização de uma eleição primária, a qual não sabiam ser ilegal; 11 foram presos por “ajudarem fugitivos”, embora fora da jurisdição do NSL; para os funcionários públicos passou a ser obrigação declarar que Hong Kong é parte da RPC; as eleições legislativas marcadas para Setembro de 2020 foram adiadas devido à pandemia e, em Novembro de 2020, numa medida directamente imposta por Pequim, 4 membros pró-democracia do LEGCO foram destituídos por não serem suficientemente patriotas, além de 1 membro da oposição se ter demitido em solidariedade. O partido Demosisto, fundado nos protestos pró-democracia, também foi imediatamente dissolvido pelos seus membros, uma vez que sob a NSL este passaria a ser ilegal. Alguns dos seus membros mais célebres, como Joshua Wong e Agnes Chow, foram condenados a uma pena de perto de um ano de prisão devido à sua organização e participação numa manifestação ilegal. Nathan Law, outro ex-membro desse partido, escapou para o Reino Unido por receio das consequências da nova lei, aproveitando medidas especiais do Reino Unido para acolher dissidentes da RAE. Chow já tinha sido presa em Agosto de 2020 por conluio com forças estrangeiras e a ampla implementação da lei levou Wong e Law a manifestarem receio pela ambiguidade da sua interpretação e implementação.

Na educação: em Fevereiro de 2021 passou a ser obrigatório ensinar a NSL, desde a escola primária aos professores universitários. Segundo as directrizes do Departamento da Educação de Hong Kong, além da obrigação de ensinar os crimes sujeitos a punição, os alunos e estudantes universitários aprenderão também etiqueta, a levantar a bandeira da RPC e a cantar o seu hino. Como parte desta medida, Pequim propagou um video animado destinado às crianças, de forma a desenvolver o seu espírito nacionalista, garantir lealdade e uma apreciação estrita da lei. Em adição, para além da alteração no currículo das escolas e universidades (focada na exclusão dos estudos liberais que incentivavam ao pensamento crítico), os professores passaram a ser aconselhados a reportar “material perigoso para a segurança nacional” de outros tutores e comportamento indevido dos seus alunos. Por fim, passaram a ser proibidos nas bibliotecas livros que não estejam de acordo com a lei. Nos media: a jornalista de investigação Choy Yuk-ling foi presa por alegadamente ter mentido para poder aceder a uma base de informação pública na sua investigação a más práticas da polícia, nomeadamente à inacção da polícia em ataques de gangues armados contra activistas pró-democracia. Passou também a haver um contacto telefónico com as autoridades para potenciais testemunhas poderem denunciar qualquer incumprimento da lei e foram introduzidas algumas medidas restritivas da representatividade nos media que afectam sobretudo os pequenas empresas locais e freelancers. Ao magnata e dono de várias empresas de media Jimmy Lai, preso devido aos seus comentários, “actividades pró-democracia” e “conluio com forças estrangeiras”, foi rejeitado o direito a fiança pelo Tribunal de Apelação de Hong Kong (HKCFA). Em atitude desafiante, Lai comparou Hong Kong sob a NSL a Xinjiang e disse temer pelo futuro dos habitantes mais jovens da RAE.

Em conclusão, este artigo põe em evidência 4 questões controversas sobre a NSL: a máxima imperativa “1 país, 2 sistemas” deixou de ser uma realidade? ; a tentativa de impor uma visão política e ideológica no ensino de Hong Kong demonstra a inflexibilidade do sistema socialista e nacionalista da China, apesar de defender consistentemente uma perpectiva multilateral nas Relações Internacionais? ; a ambiguidade da interpretação da linguagem técnica e vaga da nova lei camufla a arbitrariedade da sua aplicação? ; por fim, pode a NSL ser considerada uma ferramenta para silenciar críticos do regime chinês? O futuro de Hong Kong enfrenta portanto um dilema entre a segurança e a liberdade. A nova realidade poderá significar uma erosão significativa da Lei de Bases de Hong Kong e um afastamento de Pequim dos princípios defendidos pelo Direito Internacional, tendo já sido condenada pela comunidade internacional, cuja reacção tem sido limitada pela crescente influência económica e política da RPC no mundo. Para os mais jovens, que procuram segurança na ordem, este poderá ser mais um tijolo na muralha metafórica de Roger Waters (ex-Pink Floyd): reforçada a intolerância à liberdade de expressão, prosperam o medo e o receio de gozar o direito universal de uma expressão individual mais completa e em contacto desembargado com outras culturas, por punição ao crime de ultrapassar barreiras ideologicas.

Faça o primeiro comentário a "Entre a Segurança e a Liberdade – a Lei de Segurança Nacional de Hong Kong"

Comentar

O seu endereço de email não será publicado.


*