“If, however, the powerful are able to fix the premises of discourse, to decide what the general populace is allowed to see, hear and think about, and to ‘manage’ public opinion by regular propaganda campaigns, the standard view of how the system works is at serious odds with reality”
– Manufacturing Consent: The Political Economy of the Mass Media
O livro Manufacturing Consent: The Political Economy of the Mass Media por Edward S. Hermann e Noam Chomsky celebra, em 2020, 32 anos de existência.
Os mass media são tipicamente vistos como independentes da estrutura de poder e livres de propaganda e manipulação nas sociedades liberais e democráticas, em contraste com regimes totalitários, onde os mass media são submetidos à vontade do estado. Hermann e Chomsky mostram uma outra perspetiva, evidenciando-a com vários exemplos ao longo do livro: os mass media, detidos por megacorporações, têm uma forte ligação com os governos, instituições financeiras e grupos de interesse, servindo os interesses políticos, económicos e sociais que estes têm em comum. O “modelo de propaganda” ilustrado neste livro explica como é que o conteúdo dos mass media é “filtrado”, estabelecendo o que é e o que não é digno de notícia consoante os interesses da elite, fabricando uma “realidade” – por isso é dito que o consentimento das massas é manufaturado, ou seja, é fabricado. Esta perspetiva rompe com a ideia nutrida nas sociedades democráticas, de que os mass media são um ator que luta contra os abusos de poder das elites.
O livro enfatiza as dimensões chave do poder da elite sobre os mass media, demonstrando como estes são constrangidos.
Os “filtros” parte do “modelo de propaganda” são os seguintes:
- A dimensão das corporações que detêm os mass media, a tendência à concentração da posse dos mesmos (levando a oligopólios) e o interesse primário em maximizar o lucro;
- Os anúncios como principal fonte de receita;
- A dependência e cumplicidade entre os mass media e as fontes de informação ligadas ao governo;
- “Flak” – meios para orientar a informação de maneira a que seja favorável aos interesses das elites, “autocensura”;
- A criação de um inimigo comum que, dependendo a época, pode ter faces diferentes. Na 1º edição do livro o “anticomunismo” era o 5º filtro; nas versões seguintes, os autores consideraram outros “inimigos comuns”.
Tendo em conta os filtros mencionados, este artigo irá salientar três momentos onde é ilustrada a hipótese apresentada no Manufacturing Consent – a servitude dos mass media às elites. Assim, exploramos a aplicação do “modelo de propaganda” a exemplos atuais, verificando a sua capacidade
Falemos primeiro no estudo feito pela Harvard Kennedy School acerca da evolução da linguagem usada para descrever atos de tortura perpetuados pelos Estados Unidos da América (EUA), especificamente waterboarding[1][2]. Foi avaliada a forma como os 4 maiores jornais dos EUA noticiaram e discutiram waterboarding nos últimos 100 anos, referindo-se a esta técnica como “tortura” enquanto o governo o fez. Quando o governo norte-americano parou de descrever essa técnica como “tortura”, os jornais pararam também de descrever waterboarding como tal.[3]
“The current debate over waterboarding has spawned hundreds of newspaper articles in the last two years alone. However, waterboarding has been the subject of press attention for over a century. Examining the four newspapers with the highest daily circulation in the country, we found a significant and sudden shift in how newspapers characterized waterboarding. From the early 1930s until the modern story broke in 2004, the newspapers that covered waterboarding almost uniformly called the practice torture or implied it was torture: The New York Times characterized it thus in 81.5% (44 of 54) of articles on the subject and The Los Angeles Times did so in 96.3% of articles (26 of 27). By contrast, from 2002-2008, the studied newspapers almost never referred to waterboarding as torture. The New York Times called waterboarding torture or implied it was torture in just 2 of 143 articles (1.4%). The Los Angeles Times did so in 4.8% of articles (3 of 63). The Wall Street journal characterized the practice as torture in just 1 of 63 articles (1.6%). USA Today never called waterboarding torture or implied it was torture.”
No artigo escrito por Glenn Greenwald, um jornalista vencedor do prémio Pulitzer, para a Salon, o mesmo aponta que o estudo mostrou que estes jornais estão, no entanto, muitíssimo mais propícios a referirem-se a waterboarding enquanto “tortura” quando outras nações usam a técnica, retraindo-se de usar tal definição quando a técnica é praticada pelos EUA:
“In addition, the newspapers are much more likely to cal waterboarding torture if a country other than the United States is the perpetrator. In The New York Times, 85.8% of articles (28 of 33) that dealt with a country other than the United States using waterboarding called it torture or implied it was torture while only 7.69% (16 of 208) did so when the United States was responsible. The Los Angeles Times characterized the practice as torture in 91.3% of articles (21 of 23) when another country was the violator, but in only 11.4% of articles (9 of 79) when the United States was the perpetrator.”[4]
A dissonância entre reportar waterboarding como tortura quando perpetuado por outras nações, mas reportar sem menção a tal quando perpetuador são os EUA, demonstra-nos claramente uma cumplicidade entre estes 4 grandes jornais e o governo dos EUA, que ilustra a “filtragem” referida na obra Manufacturing Consent. Hermann e Chomsky argumentam que é este tipo de interferência que altera a forma como a população pensa relativamente a um determinado assunto.
Outro exemplo atual e relevante ilustra como a recolha de informação por parte de grandes corporações como o Facebook ou a Google pode interferir com eleições – no caso, com as eleições alemãs.
Reportado no Bloomberg Businessweek[5], uma companhia americana, que trabalhou para figuras como Trump, Le Pen, e Netanyahu, envolveu-se com o escritório do Facebook de Berlim para angariar detalhes sobre os eleitores alemães, direcionando anúncios do seu cliente para os eleitores que se mostrassem mais propícios a votar no seu cliente – o partido Alternative für Deutschland, um partido de extrema-direita alemão, que esperava assim ganhar lugares no parlamento, sendo o primeiro partido de extrema-direita a fazê-lo desde o fim da II Guerra Mundial. Esta operação levada a cabo no meio digital, manipulou eleitores na véspera de uma eleição importante, fazendo uso da informação que o Facebook coletou dos seus usuários.
“The day before the election, drinking espresso at a cafe near the Berlin Zoo, Canter explained how he used the AfD’s 300,000 Facebook likes to target millions of other Germans who might be receptive to the party’s message. ‘We took that 300,000, and Facebook created a model of them and used their lookalike audiences to find the closest 1 percent of German people to match that audience,” he said. That process generated a new group of 310,000 people who were most similar to AfD fans.’ ” [6]
O 2º filtro do “modelo de propaganda” saliente a relevância dos anúncios como fontes de rendimento, pois empresas como o Facebook ou a Google vendem a informação que reúnem dos seus usuários às empresas de publicidade, para que estas consigam direcionar os anúncios que mais se adequam a cada usuário.[7] Um exemplo desta técnica são as “cookies”, uma ferramenta abundantemente utilizada na internet.
Neste último exemplo, observamos o furor mediático que cercou a saída dos EUA do Acordo de Paris, sabendo que as alterações climáticas foram um tópico que muitíssimos meios de comunicação norte-americanos escolheram não abordar nas entrevistas realizadas a Trump, antes de este ser eleito como presidente.
Segundo a Fair.org, excluindo 2 entrevistas levadas a cabo pela Washington Post e pelo New York Times, na maioria das entrevistas feitas pelos restantes jornais (incluindo outras entrevistas feitas pelos jornais mencionados) durante o período de campanha de Trump, não lhe foi inquirida a sua perspetiva acerca das alterações climáticas. No debate eleitoral, também não foram colocadas questões relacionadas com o tópico, nem a Trump nem a Hillary Clinton.[8] Até dia 1 de junho de 2017, aquando o anúncio da saída dos EUA do Acordo de Paris[9], parecem ter escolhido ignorar a questão das alterações climáticas.
Sabendo que os EUA são uma enorme potência e um dos maiores produtores de petróleo bruto (o maior produtor em 2019[10]), porque haveriam os mass media de negligenciar este tópico?
Em suma, o “modelo de propaganda” descrito nesta obra lança um alerta, evidenciando que existe manipulação da informação que chega à população. Este livro desmascara os mass media enquanto porta-voz do povo e da justiça, perspetiva particularmente defendida em sociedades democráticas, mostrando antes que estes não são um instrumento que monitoriza e fiscaliza a ação estado e das grandes corporações, não conseguindo denunciar os seus abusos de poder. Somente o facto de existir concentração da posse dos mass media (de 50 empresas no total em 1983 para 6 empresas em 2012) [11] apresenta um risco, apresentando-se enquanto ameaça a uma sociedade verdadeiramente democrática. Porém, os autores analisam para além desta concentração de poder, expondo outras ameaças igualmente graves. O “modelo de propaganda” apresentado na obra Manufacturing Consent: The Political Economy of the Mass Media, mostra ser uma ferramenta de análise fundamental, mesmo depois de três décadas, explicando o papel dos mass media enquanto um ator (ou ferramenta) inserido na estrutura de poder vigente, e não enquanto ator objetivo e neutro, desamarrado das elites.
Chomsky, Noam; Hermann, Edward. Manufacturing Consent: The Political Economy of the Mass Media (New York: Pantheon Book, 2002).
Pedro-Carañana, J., Broudy, D. and Klaehn, J. (eds.). The Propaganda Model Today: Filtering Perception and Awareness. Pp. 279–286. London: University of Westminster Press. DOI: https://doi.org/10.16997/book27.r. License: CC‐BY‐NC‐ND 4.0
Mendel, T., Castillejo, Á G., Gómez, G. (2017). Concentration of Media Ownership and Freedom of Expression: Global Standards and Implications for the Americas. Retrieved December 26, 2020, from https://unesdoc.unesco.org/in/documentViewer.xhtml?v=2.1.196 UNESCO
Pedro-Carañana, J., Broudy, D. and Klaehn, J. 2018. Introduction. In: Pedro-Carañana, J., Broudy, D. and Klaehn, J. (eds.). The Propaganda Model Today: Filtering Perception and Awareness. Pp. 1–18. London: University of West-minster Press. DOI: https://doi.org/10.16997/book27.a. License: CC‐BY‐NC‐ND 4.0
[1] um método de tortura que submete o indivíduo a um afogamento simulado
[2] https://dash.harvard.edu/handle/1/4420886
[3] https://www.salon.com/2010/06/30/media_258/
[4] https://dash.harvard.edu/handle/1/4420886
[5] https://www.bloomberg.com/news/articles/2017-09-29/the-german-far-right-finds-friends-through-facebook
[6] https://www.bloomberg.com/news/articles/2017-09-29/the-german-far-right-finds-friends-through-facebook
[7] https://fair.org/home/still-manufacturing-consent-an-interview-with-noam-chomsky/
[8] https://fair.org/home/in-a-dozen-interviews-media-never-bothered-asking-president-trump-about-climate-change/
[9] https://www.nytimes.com/2017/06/01/climate/trump-paris-climate-agreement.html
[10] https://www.eia.gov/tools/faqs/faq.php?id=709&t=6
[11] https://www.businessinsider.com/these-6-corporations-control-90-of-the-media-in-america-2012-6
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