O INSEGURO FUTURO

ADRIANO MOREIRA

Presidente do Instituto de Altos Estudos

Da Academia das Ciências de Lisboa

Professor Emérito

De Universidade Técnica de Lisboa

I As esperanças depois da Guerra de 1939-1945

A guerra de 1939-1945, tendo entre a memória das suas consequências a globalização do desastre, conduziu ao projeto, com memória múltipla secular e sempre impossível de efetivar, de estabelecer uma estrutura da ordem pacífica mundial, que teve como centro a organização da ONU. Não sendo justo esquecer os serviços prestados à humanidade pelas suas organizações, é impossível a tranquilidade ao ouvir as intervenções, dirigidas ao globo, na 75.ª reunião da Assembleia Geral da ONU, pelas duas grandes potências que são os EUA e a China. Temos proximidade entre esta Assembleia Geral e a celebração dos 70 anos da NATO, cujo conceito estratégico, aprovado em 2010, visava a defesa coletiva, gestão de crises, e segurança coletiva. A complexidade da conjuntura, que torna imprevisível o futuro deste século, recorda a visão de John Rawls, (Theory of Justice, 1971), quando acentuou que as “construções jurídicas estendem seu “veil of ignorance” sobre a realidade anunciada pela guerra, mas não lidas pelas teorias da “nacional choice”. O facto desafiante é que a realidade desenvolveu uma interdependência global de todas as antigas supremacias, mas a Carta da ONU não disciplinou esse desenvolvimento. Talvez o conflito do discurso de Trump, nos seus sete minutos de imputação à China da responsabilidade pela propagação da pandemia do Covid-19, tornasse esclarecedora a resposta de Xi-Jinping de que nenhum país pode ser o “Chefe do Mundo”. Na Assembleia talvez algum delegado presente tenha recordado que o General Ben Hodges, ex-combatente das forças americanas, deixou em 2018 o aviso público de que “EUA e China estarão em guerra dentro de quinze anos”. Poderá ser mais um desastre global, filiado, entre razões abrangentes, pelo facto de a Carta da ONU ser mais um capítulo da ocidentalização do mundo, sem participação da pluralidade de etnias e culturas que não aderiram globalmente nem ao passado nem ao futuro proposto. Os analistas não se defrontam com um “mundo único” no sentido da Carta da ONU, mas com a exigência do pluralismo da realidade de propor, nem sempre coletivamente com paz, traçar linhas vermelhas sobre o globo político, que dão explícita e diferente identidade aos EUA, Europa, Rússia, China, Médio Oriente, África, Ásia, América Latina, um assumido “mundo em competições”. E porque é de origem ocidental a ONU, é necessário avaliar a real consistência, sem cortes, da solidariedade que definiu indispensável. Como foi dito, “não se trata de lecionar sobre navegação, enquanto o barco se afunda”, mas de assegurar que se respeita, com alterações participadas, o original projeto de ocidentalizar o mundo, procurando manter a básica definição cultural e científica de que se ocupou Jacques Barzun com o seu notável “Da alvorada à decadência”. Parece que o princípio dominante do “conceito estratégico americano”, é o de assumir a posição de mundial dirigente. Talvez esqueça que o Presidente Kennedy tenha sido, na sua curta vida, o que mais claramente afirmou a orientação da superioridade ética perante o Mundo, ao qual deveriam provar que era uma tarefa nobre assegurar a vida dos homens, apoiar a vida justa dos homens e a organização das sociedades sobre a liberdade humana. Demonstrar que a democracia americana resolve os seus problemas com o consentimento de todos, dentro da justiça e da igualdade: “a nossa democracia deve provar que tão capaz ela é de lutar pacientemente mas com clarividência e paixão em favor da liberdade humana na Ásia, no próximo oriente, na África e na América do Sul, como de fazer frente à superioridade atualmente detida pelos soviéticos no domínio dos satélites artificiais”. O atual discurso americano presidencial, na Assembleia Geral da ONU, dificilmente teve qualquer lembrança desta parte da crónica da função que exerce. E também, ao contrário da União Europeia, onde está a raiz do ocidentalismo, continua a ignorar que cada Estado tem o dever de respeitar a cooperação global. A contribuição deste discurso começa por enfraquecer mais profundamente a esperançosa utopia da fundação da ONU, e limita a pregação da esperança que apoiaram no sucessivo convite aos sucessivos Papas, Paulo VI, João Paulo II por duas vezes, o Papa Emérito, e por último o Papa Francisco, que os Cardeais foram buscar ao fim do mundo. Este, numa das suas famosas entrevistas, contou que, Bispo em Buenos Aires, uma mãe, com uma criança ao colo, lhe pediu ajuda porque o filho estava a morrer de fome. Ele respondeu-lhe que era sábado e que segunda-feira a socorreria. A mulher respondeu-lhe – “mas o meu filho está a morrer de fome neste sábado, não é na segunda-feira”. Ele socorreu-a imediatamente e passou a pregar que “em nenhum sábado se pode ficar à espera de segunda-feira”. São excessivamente numerosos os responsáveis dirigentes que não entenderam o conceito. Nem o regresso ao confronto étnico, com expressão visível nos EUA.

II – Exemplos dos conflitos étnicos nos EUA

Talvez o primeiro documento que testemunha a presença dos conflitos étnicos nos EUA, que até este século sem bússola continuam a desafiar a reprovação crescente das populações de outros Estados, tenha sido o livro de Tocqueville (De la democracie en Amerique, 1951) onde deixou documentada a mensagem que os iroqueses enviaram ao Congresso dos EUA, cujo texto principal diz: “Os nossos pais e os vossos deram as mãos em sinal de amizade, e viveram em paz. Tudo o que o homem branco pediu para satisfazer as suas necessidades, foi-lhe dado prontamente pelo Índio. O Índio era então o senhor, e o homem branco o suplicante. Hoje, tudo mudou: a força do homem vermelho tornou-se fraqueza, à medida que os seus vizinhos cresciam em número, o seu poder diminuiu constantemente: e agora, de tantas tribos poderosas que cobriam a face do que vós chamais Estados Unidos, dificilmente restam algumas que o desastre geral tenha poupado. As tribos do Norte, tão faladas outrora entre nós pelo seu poderio, quase já desaparecemos. Tal foi o destino do homem vermelho da América. Estamos aqui os últimos da nossa raça: é-nos também necessário desaparecer?” A resposta esteve evidente na Lenda Americana do Índio Jerónimo, nascido em 16 de junho de 1829, e morto em 17 de fevereiro de 1909. Depois de perder a esperança na paz com os brancos dominadores, morreu nesse combate de 17 de fevereiro comandando os apaches Chiricahua. Não é possível esquecer os princípios que se tornaram de interesse entre os ocidentais, que especialmente são devidos a Thomas Jefferson (1740-1826), Presidente dos EUA (1801-1809), fundador da Universidade de Virgínia, mas também um mestre do constitucionalismo democrático, deixando um Manual importante no ensino americano, e uma muito citada Notes on The State of Virginia, versando os princípios do ideal chamado Jeffersonian Democracy, lembrando para a Constituição de 1789 incluir um Bill of Rights. Infelizmente, a guerra civil, que durou de 1861 a 1865, com milhares de mortos, chegou ao fim com Lincoln a abolir a escravatura, um triunfo humanista que talvez não foi uma conclusão aceitável para a linha de pensamento que manteve a cólera contra a abolição que levou ao seu assassinato em 14 de abril de 1875, mantendo nova forma de conflito no dia seguinte. Acontece que a discriminação social impede frequentemente que a lei consiga logo, nas visões dos interesses, corresponder a que os próprios interessados na revogação legal de um sistema considerado injusto, venham a enfrentar o que os mais atingidos consideram, vivos, não terem mantido o seu “right to life”, tão diferentemente defendido por Locke: É essa atitude, em face de leis identificáveis, que leva a que a luta pela autenticidade exija sacrifício como o assassinato de Martin Luther King em 4 de abril de 1968, o menos humanista Malcon X também fora assassinado em 21 de fevereiro de 1965, e até a entrada livre nos transportes e universidades foram direitos ignorados por fortes violações. O recente assassinato selvagem pela polícia de George Floyd, de novo implicou o clamor condenatório deste conflito com o “direito comum” exigível pelos direitos “internacional” e “nacional”, tornado evidente que o mais lúcido missionário dos valores ignorados, ou até constantemente violados, foi o Chefe Índio Seattle (1854), na carta que enviou ao Presidente dos EUA, Franklin Pierce. É longa, mas é notável, e realista em mais de um parágrafo, incluindo estas palavras a distinguir: “Nós sabemos que o homem branco não entende o nosso modo de ser. Para ele um pedaço de terra não se distingue de outro qualquer, pois é um estranho que vem de noite e rouba da terra tudo de que precisa… Talvez, apesar de tudo, sejamos todos irmãos. Nós o veremos. De uma coisa sabemos – e que talvez o homem branco venha a descobrir um dia: nosso Deus é o mesmo Deus… Esta terra é querida Dele, e ofender a terra é insultar o seu Criador.“. Recentemente, o Presidente atual dos EUA, também desafiado pelo Coronavírus, criou uma nova imagem exibindo, na mão direita erguida, um exemplar da Bíblia. Alguém terá de lhe lembrar que o livro para ser lido, tem de ser aberto, voltando a reforçar a solidariedade ocidental e atlântica a favor da eliminação do sofrimento dos humanos. A atitude presente não deve estar ausente das inquietações da Presidente da Comissão Europeia, nem do Secretário Geral da ONU, que se têm mostrado severos defensores não apenas das finanças, mas dos direitos humanos sem diferença de etnias ou culturas, certos de que nenhum Estado, nenhuma instituição, nenhum governante desinformado tem capacidade para enfrentar um futuro desejado por todos os habitantes da terra única. A ONU tem este dever nos seus princípios. Estes são um dever para estadistas. Infelizmente, a incapacidade do funcionamento do Tribunal Penal Internacional, instituiu o que chamo a Amnistia pelo Silêncio.

III – A Amnistia pelo Silêncio

O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos foi uma inovação que, pela primeira vez, deu aos cidadãos dos Estados aderentes o direito de recorrer para uma instância transnacional, mesmo contra decisões do seu Estado de pertença. Era um evidente condicionamento da soberania como é classicamente entendida, mas filiava-se na “justiça natural” que tem inspirado as Declarações de Direitos Humanos, como a da ONU, e antes da americana e da francesa. O conselho da Europa, entidade que incorpora o Tribunal, sancionou em 2014 a Rússia, pela sua política em relação à Ucrânia, como a imprensa internacional largamente comentou, sublinhando o rigor do fundamento e não omitindo enfraquecimento do Conselho. Subitamente, quando se preparava a sessão parlamentar do Conselho, que se realizou em 24 de junho, o Parlamento Russo informou que a sua delegação estaria presente em Strasbourg. A reação foi de júbilo pela chamada reintegração, que não assentou em qualquer reparação da causa da exclusão, ou decisão de amnistia, mas simples pelo silenciamento coberto pelo júbilo. Designadamente o Le Monde de 24 de junho, sublinhava que “se Moscovo saísse da Instituição, os cidadãos russos não mais teriam acesso ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Mas infelizmente teve de não omitir que, se o benefício abrangia 144 milhões de cidadãos russos, o Tribunal, em vinte anos, tinha recebido mais de 160.000 recursos desses cidadãos, mas Moscovo “se conforma raramente com as sentenças”. Não deixa de ser preocupante que entre vários parlamentares, o motivo dominante é o receio das consequências de uma rutura com a Rússia, acrescentando o risco de tal rutura contagiar a Turquia ou o Azerbaijan, frequentemente criticados pela displicência em relação aos Direitos Humanos. O facto mais semelhante ao temido contágio, passa-se com o governo dos EUA, a pátria da Primeira Declaração de Direitos de Jefferson, ele próprio crítico da omissão dessas declarações nas constituições democráticas, e seguramente de governantes que não tenham lido a de Virgínia de 1776. Acontece que a criminalidade da última Guerra Mundial (1939-1945), sobretudo a praticada pelo regime nazi, implicou, em nome da justiça natural, que o Tribunal de Nuremberg fosse dotado de uma “lei retroativa” para julgar os responsáveis governantes e militares, a maioria dos quais foram condenados à morte e executados. Organizada a nova paz, cujos princípios foram consagrados pela Carta da ONU, foi instituído um Tribunal Penal Internacional que tem a competência de julgar os crimes de guerra, que não deixaram de ser praticados depois da prometida e ambicionada paz no “mundo único”. Recentemente este Tribunal publicou uma decisão no sentido de que não indagará quaisquer crimes de guerra porque não conseguiu a cooperação de nenhum Estado. O Presidente Trump festejou a decisão como uma vitória. Este inacreditável júbilo implica o apoio à amnistia pelo silêncio: não teria existido Nuremberg.

IV – A corajosa reposição da responsabilidade dos EUA

A eleição do Presidente e da Vice-Presidente dos EUA, foi um facto que não interessou profundamente apenas ao povo americano, mas também o globalismo da interdependência, em que se destaca a solidariedade dos EUA com a Europa, esta na sua forma atual da União. No sistema político norte americano existe um elemento que serve de ponto de partida para conseguir compreender a sua definição de “conjuntura”, e que é a importância do presidencialismo: de regra é o Presidente que assumirá a perceção em que as políticas internacionais serão condicionadas, com exceções de momentos considerados de presidências fracas, em que o Congresso assume a gravidade do poder. A regra parece levar a que a maioria das políticas e doutrinas internacionais dos EUA recebem o nome do Presidente que as definiu e colocou em execução. Foi assim que o mandato de Eisenhower, de 1953 a 1961, levou o antigo Comandante-Chefe da batalha pela libertação da Europa a presidir ao frequentemente considerado o ponto mais alto do poderia americano, apoiando intervenções externas de importância para a ordem internacional; Kennedy, barbaramente assassinado, proclamara que a fronteira da América estava onde estivesse a fronteira da liberdade; o Presidente Johnson anuncia a Grande Sociedade, objeto da luta pelo desenvolvimento; Nixon considerou que o acordo do país mais rico (EUA) não estivesse em desacordo com o mais pobre (China); Regan decidiu repor a Grande Sociedade do seu país no mundo; e Bush colocou no primeiro plano a questão do destino manifesto e do Pacífico. Durante o período de reconstrução da Europa, no fim da guerra de 1939-1945, a cooperação teve a intervenção do Plano Marshall e da NATO, mas em 1977 Raymond Aron concluía que “não existe diálogo global entre a Europa como uma entidade e os Estados Unidos”. Mas nunca previu a situação atual. Esta situação levou ao facto inquietante do Presidente Donald Trump, quando vencedor claro na eleição para Presidente, rapidamente se sentiu chamado à definição da relação com os Estados, quer da América Latina, quer da União Europeia, quer do Pacifico, especialmente com a China, e interventor, nem sempre com o respeito devido, quer a colaboradores, adversários, cientistas, mulheres; a NATO e a União Europeia viram afetada a confiança, na ONU declarou não aceitar as cooperações multilaterais, abandonou o Tratado de Paris sobre a limitação da emissão de gases, não hesitou em ofender cientistas, que enfrentam a crise mundial, abandonou a Organização Mundial de Saúde e deixou em liberdade o ataque da pandemia: ficou notada a mortalidade numerosa no passado presidencial de Donald Trump. Uma das eleitoras, que votou democraticamente neste ato, explicou à opinião pública, que não teria mudado se Trump tivesse assumido as suas responsabilidades sobre o Covid19, acrescentando “as suas posições contra os emigrantes ou o clima, a sua política orçamental, e sobretudo a sua personalidade”. A rapidez com que os líderes europeus felicitaram Joe Biden, além de evidenciar a confiança com o regresso de um estadista reconhecido, reforçava o apreço da atitude que o eleito tomava nestas palavras: “o objetivo da nossa política não é a guerra total e sem fim. E não é alimentar as chamas do conflito, é resolver problemas”. Quanto à importância da população apenas recentemente americana, teve importância no triunfo democrático o facto de a concorrente a Vice-Presidente ser uma mulher, Kamala Harris, que recusou ser considerada socialista, dizendo: “Uma perspetiva socialista, ou uma perspetiva progressista? É a perspetiva de uma mulher que cresceu com a crença negra na América, que foi procuradora, cuja mãe chegou da Índia com a idade de 19 anos”. A resposta atual do vencido republicano Trump é de fidelidade à sua adoção do modelo de Estado Espetáculo que sempre assumiu. Há porém uma declaração pública, que tem de ser avaliada pelos responsáveis, não apenas americanos, mas também europeus, no que toca à rutura do “ocidente” por esta eleição. O General Ben Hodges, ex-comandante das forças dos EUA na Europa, antecipou em 2018, que os “EUA e China” estariam em guerra dentro de 15 anos. Na data das notícias sobre a recente eleição americana, o General Nick Carter, chefe das Forças Armadas britânicas, declarou que “a escalada das tensões regionais é um terreno fértil para erros de cálculo que nos põem mais perto de um conflito generalizado… podemos assistir a uma escalada que resulte em erros de cálculo, e o que estou a dizer é que o risco existe e temos de estar conscientes desses riscos”. A experiência, e valores, de Joe Biden, apontam para uma necessária ética internacional, que reponha a unidade do povo americano e o dever da cooperação internacional em confiança e paz. A Paz que subitamente tem o brutal ataque da Pandemia.

V – A crise do Coronavírus

É natural que a súbita crise do coronavírus atingindo o género humano pela pandemia tenha mudado todo o panorama dos desafios num chamado “mundo sem bússola”, para as análises, programas, e conflitos que ameaçam os interesses humanos e dos poderes estaduais existentes, progressivamente inquietos com a secundarização do multilateralismo mundial defendido pela ONU. Os estudos sobre a possibilidade da violação da paz ocupam-se da nova perigosidade dos mares, destacando-se a força naval chinesa, a competição entre os EUA, a China, a Rússia, assim como eventualmente a dos restantes chamados emergentes, a Europa atingida pelo Brexit e assumindo a defesa da sua unidade depois de séculos, com novos factos inquietantes como as migrações a violarem o cumprimento dos deveres humanitários. Finalmente, um General ilustre, que é o General Abel Cabral Couto, sócio efetivo da Revista Militar, publica um estudo notável intitulado “A crise do coronavírus (Covid-19), a guerra e estratégia: uma reflexão crítica”. O estudo de Soromenho-Marques – Depois da Queda (2019) tinha elaborado uma pergunta que se evidenciou no ambiente corrente: Que Forças Armadas na época de emergência ambiental e climática? O brilhante ensaio do General Cabral Couto, aponta para igual pensamento atento à mudança provável da ordem mundial, área que lhe deve uma longa vida de estudo e conclusões. Temos outras demonstrações dessa experiência do espírito da instituição militar demonstrado no risco institucional sem julgar das decisões políticas que decidem a ação. Foi o caso das paraquedistas da Força Aérea, que intervinham sem distinguirem feridos nacionais ou adversários, as quais publicaram um livro documentário sobre cada uma, incluindo a colega que morreu num desastre de avião, e da qual escreveram que cuidaram do corpo para que ficasse tão bonita como quando era viva. E sobretudo distinguindo-se o livro das Crónicas Intemporais – Da Guerra e da Fraternidade (50 anos), em que catorze autores, no fim de 2019, fazendo 50 anos do Juramento de Bandeira, relatam, cada um, as experiências vividas, prestando um serviço à história e ao saber. O notável estudo do General Cabral Couto desenvolve uma experiência que procura organizar os saberes que incluem “o possível fim de um mundo antigo e criação de um mundo novo”, no dizer corrente de J. Carpentier e de um vasto grupo de estudiosos, lembrando a “peste negra” dos anos de 1347-1352, que implicou a guerra, e destruiu a população europeia de 80 milhões em 1300 para 65 milhões em 1400, continuando as perdas, causadas pela guerra, inspirada pelo controle de espaços políticos e económicos nascidos do tipo de vida precedente. A questão é portanto a consideração de que os passados epidémicos implicaram uma relação grave entre a paz e a guerra, e entre a guerra e a nova estratégia, visando hoje impedir que qualquer indesculpável leviandade multiplique o desastre. A intervenção do estudioso e respeitadíssimo General Cabral Couto, presta um serviço que pode não atrair o verbalismo, por vezes surpreendente, e mais próximo do Estado Espetáculo do que da posse da prudência governativa, uma prática que produz opiniões perigosas vindas de responsáveis mundiais que assumiram o poder pelo uso do populismo. Note-se que assim como a peste negra mudou e inovou o tempo significativamente pelo que Boccace (1348) chamou a “epidemia imortal”, admitindo-se que parte fosse a obra das influências astrais, ou o resultado das novas iniquidades, e que Deus, na sua justa cólera, manifestasse sobre os homens a punição dos seus crimes. Espera-se que não seja por isto que, em França, se discute o futuro das 42.000 Igrejas do Hexágono, quando o número dos crentes desce inesperadamente. Vender as Igrejas é entendido como um sacrilégio pelos cristãos, mas a sua conservação, muito dispendiosa, obriga, por vezes às dioceses a tomar decisões dolorosas (Le Monde, 31 de maio, 2020). Mas as palavras e os atos que, em potências consideradas serem das mais poderosas, atacadas desatentas pela crise, desrespeitam ou ameaçam os adversários considerados, com parcialidade ou sem ela, sobretudo os que governam, seria esperançoso que tivessem atenção ao texto militar e académico do General Cabral Couto. Ele, tranquilo, afirma que enfrenta a “falha, nesta área, da cultura, na maior parte das elites políticas, relativamente à problemática da segurança”, e acrescenta que tem 90 anos “mas espera sobreviver à crise”, e que os netos nunca se esqueçam dos “4 cavaleiros do apocalipse”. Mas logo no início, o que sustenta, e não será esquecido, é o seguinte: “as teses que apresento e defendo (de enfrentar o Covid-19) embora tenham um carater abstrato e universal, na realidade, não pude deixar de ter em mente o chamado “Mundo Ocidental” e, especialmente, a UE e o nosso país”.

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