No século XIX, no apogeu do império, a Grã-Bretanha assume-se como a grande potência talassocrática, de costas viradas para o velho continente, e sem par na empreitada colonial. Apesar da sua posição dominante e relativa segurança geográfica, dada a condição de insularidade, o papel histórico da Grã-Bretanha passou frequentemente pelo do actor que, estando fora do pêndulo geopolítico europeu, que ora passa por momentos de força do eixo francês, ora do eixo alemão, e cujas transições se fazem muitas vezes notar pela via de exercícios de força bélica com consequências trágicas, acaba por ser o kingmaker, ou por outras palavras, a parte interessada que meramente intervém para decidir quem é o vencedor e o perdedor no continente. Ao alhear-se dos assuntos do continente, viu na 2ª Grande Guerra a potência emergente trazer o conflito para o seu solo, por via de pesados bombardeamentos e bloqueios navais. No entanto, este posicionamento ecoa até aos dias de hoje, podendo o evento do Brexit ser visto como mais uma reavaliação estratégica por parte do Reino Unido, sendo geograficamente europeu, mas não querendo estar directamente envolvido nas questões que ocupam o continente, em particular, a União Europeia, e não se sujeitar aos seus desígnios.
Esta abordagem, porém, encontra paralelos do outro lado do Atlântico. A hegemonia americana, que emergiu precisamente do final da 2ª Guerra Mundial, e mais tarde da queda da União Soviética, tem sido marcada por um envolvimento pronunciado da política externa dos Estados Unidos nos assuntos do mundo. A maior economia mundial é também detentora da marinha mais poderosa da história e consequentemente, da maior capacidade de projecção de poder militar a nível puramente ofensivo – o que do ponto de vista estratégico pode ser justificado com o que podemos chamar uma condição de pseudo-insularidade vis à vis a Grã-Bretanha, mas de dimensões continentais. O sistema colonial, que foi, em larga medida, derrubado pela pressão americana do pós-guerra e pela formação da ONU, acabou por ser substituído por um ambiente empresarial altamente dinâmico e competitivo, e uma capacidade de consumo sem comparação no contexto actual, capacidade que também foi uma arma estratégica fundamental na criação da ordem internacional da segunda metade do século XX, em particular na criação de uma aliança que se opusesse à União Soviética.
Meses depois do desfecho do referendo que visava a permanência ou a saída do Reino Unido da União Europeia, as eleições americanas viram entrar um presidente com um discurso marcadamente proteccionista, isolacionista, e com uma abordagem à política externa do país numa base quid pro quo – a alçada defensiva dos Estados Unidos (via NATO) não seria mais disponibilizada sem que os seus beneficiários oferecessem contrapartidas, ou no mínimo, que assumissem os compromissos a nível de gastos militares que fazem parte da NATO. Alguns autores afirmam que este processo de recentração da política americana já estava em curso desde a queda da URSS, e que o presidente actualmente de saída Donald Trump apenas o verbalizou[1], mas esta mudança, a par da emergência anunciada, seja a nível económico quer a nível geopolítico, de novos países ao palco principal da política internacional faz-nos repensar qual será o papel dos EUA no futuro. A resposta poderá estar precisamente no passado.
Apesar de se manter como a primeira economia a nível mundial, o consenso nos economistas passa pela ideia de que a proporção que os EUA ocupam do PIB mundial deverá diminuir, embora se mantenha na posição de liderança[2]. As tendências demográficas do presente século deverão reforçar este padrão, sobretudo nos países com populações jovens, onde o continente africano apresenta uma grande predominância face às populações envelhecidas do leste asiático, cujo pendor exportador levou para números de crescimento do PIB marcadamente elevados, e que ameaçavam trazer o centro de gravidade financeiro do mundo para a sua região. À medida que esta tendência abranda, e outros actores emergem, caminhamos a passo para uma ordem mundial multipolar, com uma distribuição de poderes mais equilibrada, mas ao mesmo tempo, onde os EUA se continuam a destacar, desta feita não como o polo principal de uma ordem liberal como tem sido desde 1945, de uma situação de unipolaridade a partir de 1991, mas como actor independente, com a capacidade de decidir quem são os vencedores e os perdedores da ordem mundial que se segue, enquanto se desinveste do destino dos tradicionais parceiros económicos e militares, e se foca nas dinâmicas do seu hemisfério. Este é um cenário possível de retorno ao passado, cujos reais contornos serão sem dúvida construídos pelos senhores que se seguem na tomada de decisões da política americana.
[1] Zeihan, P. in Disunited Nations: The Scramble for Power in an Ungoverned World (2020) pp. 1-61
[2] Rebelo de Sousa, A. in Da Economia (2017) pp. 737-746
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