Na cultura popular, a Alemanha é conhecida pela sua tradição literária e filosófica, nas quais o seu legado é incontornável, mas no que toca à 7ª arte, as suas produções não tendem a receber o mesmo grau de reconhecimento. Neste contexto, sugerimos um título cuja pertinência é indiscutível.
Em 1989 o Muro de Berlim caiu, trazendo consigo a divisão política e ideológica que repartia a Alemanha do século XX em dois blocos. Na Alemanha de Leste, a STASI, uma agência de polícia secreta seguia de perto os passos dos seus cidadãos, com registos detalhados das suas actividades (à semelhança da PIDE na era do Estado Novo em Portugal, a SAVAK no Irão pré-1979, ou o KGB na União Soviética). Em “As Vidas dos Outros” (Das Leben der Anderen), o personagem principal é nos apresentado como um implacável defensor deste aparelho do estado e dos seus métodos, mas que no decurso da sua missão se vê confrontado com corrupção dentro da organização e desenvolve empatia com o seu alvo – um dramaturgo, profissão cada vez mais debaixo de fogo pelo estado da RDA (República Democrática Alemã) pela sua limitação da liberdade de expressão.
Percebendo a imoralidade da circunstância, o agente Gerd Wiesler (Ulrich Mühe) leva a cabo uma série de acções e omissões que visam proteger a pessoa que o mesmo estaria encarregue de espiar e expor como inimigo do estado. Este último, o dramaturgo Georg Dreyman (Sebastian Koch), vive na perfeita ignorância face ao facto de que está permanentemente sob escuta. A beleza do filme está também na forma como resolve o enredo, e como espelha uma realidade que não nos é assim tão distante. As cicatrizes da divisão da Alemanha ainda hoje se fazem notar a nível económico, político e social, e o actor principal, que faleceu em 2007, veio a descobrir que a sua parceira na vida real, com quem participou ainda antes da queda do muro em protestos e manifestações, partilhava informações com a STASI. Quando questionado sobre como se preparou para o papel neste filme, Ulrich Mühe respondeu simplesmente, “recordei”.
“As Vidas dos Outros” é um filme marcante não só pelo que nos ensina da história não tão distante, dos métodos e das práticas de uma organização com a qual não identificaríamos a Alemanha actual, mas também pela forma como ilustra a capacidade humana para actos moralmente deploráveis, bem como do maior altruísmo e sacrifício. Na sua essência, pega num contexto histórico para o qual nos transporta de forma imersiva com atenção ao detalhe, e com isso explora a fundo o conceito de carácter, que será implicitamente seu o tema central. É esta exploração que faz deste título um exemplo fora de série.
Num contexto em que as tecnologias de comunicação transformaram o mundo, as noções de privacidade que “As Vidas dos Outros” levanta são cada vez mais provocatórias. Uma agência semelhante à STASI nos dias de hoje teria acesso a recursos infinitamente superiores, sobretudo nos meios urbanos onde a videovigilância ameaça ser omnipresente e onde a tecnologia é parte integral da vida dos indivíduos. Mas é importante não esquecer também que num contexto onde a sociedade está cada vez mais interconectada, porventura até ao desconforto, sem todavia essa ligação se traduzir em envolvimento emocional entre pessoas, que num momento onde as nossas vidas estão perfeitamente expostas, naturalmente estamos também expostos ao escrutínio ‘do outro’. Será talvez tarde demais para voltar atrás no status quo, mas aprender a viver e a conviver nesta nova forma de vida é o desafio dos nossos tempos – o ter consciência de que a barreira entre o público e o privado se está a diluir, ou a transformar, e que é preciso reaprender que as individualidades não são monolíticas, que as personalidades são multifacetadas, e que todos somos “um pouco de várias coisas”. Em suma, que apesar de todas as transformações permanecemos humanos, e que consoante as circunstâncias somos moralmente capazes do melhor e do pior.
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