O UFWD nas Relações Diplomáticas Sino-Australianas

Texto redigido por: Hugo Neves

A relação diplomática sino-australiana tem vindo a deteriorar-se desde 2017, quando surgiram suspeitas de tentativas dissimuladas de influência do Governo da China em vários sectores da sociedade australiana, acusações essas que a China rejeitou. Contudo, essa disputa entre os dois países começou por ter como assunto principal declarações políticas de discórdia das autoridades australianas, tanto em relação às acções de Pequim no Mar da China Meridional (e às suas reivindicações da Linha de Nove Raias), como ao papel dos EUA na região e às características do sistema político chinês. Já em 2020, essa tensão agravou-se com a pandemia do SARS-Cov-2, pois a Austrália liderou um conjunto de países que pediram uma investigação à sua origem devido a suspeitas de negligência e de falta de transparência por parte do Partido Comunista Chinês (PCC).

As referidas suspeitas são particularmente relevantes devido aos estreitos laços comerciais entre os dois países. A partir dos anos 90, a Austrália entrelaçou efectivamente a sua economia com a da China, tornando-se sobremaneira dependente e fragilizada no caso de uma guerra comercial – neste sentido, têm sido discutidos os riscos da sua adesão a iniciativas como o Asian Infrastructure Investment Bank (AIIB) e o Belt and Road Initiative (BRI), visto que podem acentuar essa perigosa dependência. De acordo com um estudo do Reserve Bank of Australia, se o GDP da China cair 5%, o da Austrália sofrerá uma queda de cerca de metade desse valor. Além disso, as empresas australianas que trabalham com contrapartes chinesas sabem que podem sofrer retaliações do Governo da China se tiverem uma postura crítica às políticas do PCC e a comunidade universitária chinesa na Austrália representa quase 40% do total de estudantes estrangeiros no país.

No centro da polémica está o United Front Work Department (UFWD), que é uma coligação de grupos e indivíduos que trabalham no sentido de cumprir os objetivos políticos do PCC, agindo através de várias agências, organizações sociais, empresas, universidades, institutos ciêntíficos e indivíduos em contacto com estes grupos. O seu objetivo anunciado é o de “unir grupos étnicos, religiosos, sociais e políticos”, tanto na China, como nas comunidades chinesas no estrangeiro, a fim de “ajudar o PCC a concretizar o sonho chinês”. No entanto, segundo um estudo compreensivo de Alex Joske sobre o UFWD, publicado no Australian Strategic Policy Institut (ASPI), esta coligação é um instrumento para o PCC reforçar a sua influência internacional através da cooptação, tanto de grupos de minorias étnicas e movimentos religiosos, como no meio empresarial, na ciência e na política. Segundo o estudo, essa cooptação é sobretudo concretizada infiltrando, entre outros, partidos políticos estrangeiros, comunidades de diáspora e corporações multinacionais.

Xi Jinping revigorou o UFWD em 2014, o qual caracterizou como uma “importante arma mágica para fortalecer a posição de governo do partido” e “uma importante arma mágica para realizar o sonho chinês do grande rejuvenescimento da nação chinesa”, atribuindo especial relevância ao papel da tecnologia. Por outro lado, um editorial de política externa de 2018 do People’s Daily clarifica a importância que ele coloca nas “supervantagens do sistema partidário da China”, que “iluminou o mundo inteiro”, concluindo: “É bem conhecido no mundo que uma China bem governada tem uma importância maior, dado o caos na sociedade ocidental”. Esta mentalidade é ecoada no material de treino para quadros da UFWD, no qual se adverte que as “forças hostis ocidentais” buscam derrubar o PCC e que a sua influência sobre os chineses no exterior deve ser desfeita.

A preocupação com a influência do UFWD na Austrália prende-se, em grande medida, com os seus métodos “dissimuladores e enganadores” para subverter ideológica e políticamente a sua população. Seguem-se alguns exemplos de como esta se manifesta na Austrália:

  1. Huang Xiangmo, um magnata e promotor imobiliário que fez vários avultados donativos a partidos políticos na Austrália, teve em 2019 o seu pedido de cidadania australiana rejeitado e a sua residência permanente no país revogada, quando as agências de segurança australianas determinaram que ele constituía uma ameaça para a segurança nacional devido aos os seus laços com o UFWD. Xiangmo foi director do Concelho para a Reunificação Nacional Pacífica da China (CCPPNR), administrado pelo UFWD e presidido por Wang Yang, que, tal como Xiangmo, se tornou membro da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (CCPPC) e é membro do Comité Permanente do Politburo – que supervisiona o UFWD.
  2. O ex-senador do Partido Trabalhista Sam Dastyiari, que defendeu a posição da China em relação às suas pretensões e acções no Mar da China Meridional, anunciou a sua demissão do parlamento australiano no final de 2017, após Huang Xiangmo o avisar que estaria sobre vigilância das agências de inteligência australianas. Antes disso, já havia sido criticado por ter aceite um financiamento político do referido magnata. Segundo uma investigação da Fairfax Media, ele terá também tentado pressionar a porta-voz das Relações Externas do seu partido a não se encontrar com o activista chinês Joseph Cheng Yu-shek, que se opõe a Pequim quanto à sua interferência em Hong Kong.
  3. Uma investigação conjunta da ABC Four Corners e da Fairfax Media, de 2017, escrutinou os laços de Chau Chak Wing, magnata que é um dos maiores donadores a partidos políticos australianos e membro do CCPPC, com o UFWD. Wing negou conhecer a agência, mas a investigação dá o exemplo de várias fotografias em que ele aparece junto a membros desta. De resto, a China é responsável pelo maior número de donações políticas estrangeiras na Austrália.
  4. Sheri Yan, uma lobista sino-australiana investigada por espionagem pela Organização Australiana de Inteligência de Segurança (ASIO), foi condenada a 20 meses na prisão em 2016 por suborno a um funcionário das Nações Unidas e, em 2019, um alvo das autoridades chinesas para se candidatar ao parlamento australiano, segundo uma investigação da ASIO, morreu por causas indeterminadas
  5. Wang Liqiang afirma ter desertado da sua função de espião para o PCC. Numa entrevista com a 60 Minutes Australia, detalha as operações em que diz ter estado envolvido, incluíndo a conversão de estudantes de universidades contra movimentos democráticos, através da exaltação do patriotismo.
  6. Nas Universidades: Em 2019, um estudante em Brisbane participou numa manifestação em apoio aos protestos anti-PCC em Hong Kong e alguns dias depois a sua família foi visitada pelas autoridades na China. Drew Pavlou, um estudante e activista da Universidade de Queensland crítico do PCC, foi banido dos seus campus. Estima-se também que a China gasta 10 biliões de dólares por ano em cerca de 500 centros Confucius, no seu financiamento em universidades por todo o mundo. Estes centros têm de cumprir os regulamentos do PCC, evitando a discussão de tópicos críticos ao partido.
  7. Nos media: várias empresas internacionais são controladas pela China News Service, incluindo a Australia’s Pacific Media Group e o Australian New Express Daily de Chau Chak Wing. Já as notícias online na Austrália têm ganho protagonismo no público de língua chinesa mais jovem, principalmente pela aplicação WeChat, mas o seu conteúdo é monitorizado e regulado pelas autoridades chinesas. Por fim, o Forum on the Global Chinese Language Media é um evento bienal que pretende formar laços entre a China e os media internacionais.

Actualmente, permanece a incerteza e insegurança na política australiana, perante o dilema de como lidar com o crescente poder autoritário da China, enquanto parceiro essencial para a economia australiana. Do outro lado, as ferramentas de soft power da China, como o UFWD, tornaram-se fundamentais para controlar informação sobre o PCC e impedir a discussão de temas políticos prejudiciais, numa missão de cariz marcadamente ideológico. Embora a resposta australiana possa passar por diversificar os seus parceiros comerciais, o seu maior desafio está no nível macro: a Austrália quer uma Ásia economicamente integrada, na qual o equilíbrio militar regional permaneça estável e organizado, protegido por um sistema de segurança com a participação dos EUA. Resta saber como a Austrália pode atingir esse objetivo de longo prazo, dados os seus recursos limitados e dependência de ambas as grandes potências; assim como perceber a viabilidade das estratégias de soft power da China na sua relação com as outras potências. 

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