A Transição Económica da China

Irá a economia chinesa transitar para um modelo sustentável e ultrapassar a economia americana em termos nominais?

Os autores em geral discordam sobre este assunto.

A tese de que as economias de comando, de cariz socializante, representariam vantagens face ao modelo de iniciativa privada tiveram vários proponentes ao longo da história, muitos deles oriundos da academia ocidental (convém não esquecer que o próprio Marx era alemão). E. H. Carr, um proponente do realismo internacionalista no primeiro grande debate das Relações Internacionais, era um ávido apologista da União Soviética, e considerava a emergência do seu poder e associado a ele, o seu modelo económico como inevitável, sendo da opinião de que o Reino Unido deveria procurar uma aliança Anglo-Soviética no pós-2ª Grande Guerra1. Do ponto de vista normativo, Carr é visto como tendo um certo pendor relativista, fazendo lembrar o sofista Trasímaco na República de Platão, que afirmava ser justo aquilo que é a vontade dos mais fortes. No período inter-guerras, Carr foi frequentemente criticado pelo que é entendido ser o seu apologismo da política externa alemã, pois no seu entender, os seus actos de agressão seriam consequência da dinâmica em que o conflito é gerado por estados que procuram recursos económicos, atacando aqueles que dispõem dos mesmos, e a Alemanha do primeiro terço do século XX estava precisamente numa posição economicamente desvantajosa como resultado de um conjunto de factos históricos2.

Mas como E. H. Carr, outros houve que defendiam o sistema soviético. Harry Dexter White, representante dos EUA cuja conflitualidade com John Maynard Keynes se fez notar durante as negociações do acordo de Bretton Woods, consentiu que a União Soviética executasse o que foi na prática um roubo aos EUA, utilizando o sistema monetário que foi instaurado na Alemanha ocupada para que a URSS realizasse um levantamento avultado de dólares a troco de nada. Harry Dexter White viria a falecer durante o processo de julgamento pelas suas actividades em prol da URSS.

Paul Samuelson, que viria a receber o Prémio Nobel da Economia e que ainda hoje é conhecido pelos seus manuais académicos compreensivos, também era apologista da economia de comando. A edição de 1967 de um dos seus manuais previa que a economia da URSS iria atingir a paridade com a economia americana algures entre 1977 e 1995. Em 1985, esta previsão foi retirada dos seus manuais. A realidade é que a cada revisão a data foi sendo adiada, e a URSS veio a colapsar antes que tal se materializasse.

As previsões do declínio americano multiplicaram-se ao longo do século XX, e durante os anos 80 a grande ameaça era vista como sendo o Japão. Esta última é curiosa, porque o modelo económico japonês tem algumas semelhanças com o modelo chinês da actualidade. O seu crescimento era sobretudo apoiado nas exportações, e é nesta fase que o Japão fica conhecido pela sua tecnologia de ponta, e também pela popularidade dos seus automóveis.

Mas isto leva-nos a outra questão. A economia da China é uma economia de planeamento central, de iniciativa privada, ou “é complexo”?

Xi Jinping foi citado recentemente a afirmar que o modelo económico marxista é um dos pilares da economia chinesa. Para analisar este facto, temos de olhar em primeiro lugar para a situação da propriedade no país.

O sistema chinês permite a iniciativa privada, e um indivíduo pode, a título pessoal, iniciar actividade empresarial, tal e qual como faria num país ocidental (no entanto, este é um direito reservado a nacionais, pois estrangeiros deparam-se com restrições como a obrigação de entrar em regime de joint-venture com um sócio chinês e de contratar empregados chineses). A propriedade é comercializada livremente, desde imobiliário a activos financeiros, sendo que existe uma bolsa de valores fervilhante. Então, podemos dizer que a economia chinesa é capitalista?

Mais uma vez, a resposta não é simples.

Sendo certo que existe uma forte componente privada na economia chinesa, o estado controla sectores estratégicos, como a energia. O governo realiza também fortes estímulos do lado da oferta – como políticas de aumento da massa monetária, o que não se coaduna com uma visão de capitalismo laissez-faire, com a sua visão anti-despesista e anti-intervencionista – estímulos estes que acabam por resultar em níveis de desemprego baixos. No entanto, a procura interna é relativamente baixa, sendo que constatamos que o regime fiscal é regressivo – indivíduos com rendimentos mais baixos pagam uma proporção maior dos seus rendimentos, o que reduz o respectivo poder de compra. O estado social na China é também marcadamente fraco, o que coloca o seu respectivo sistema económico em contraste com os sistemas mistos europeus e de outras zonas do globo, onde os apoios sociais são avultados.

Com efeito, as práticas de desvalorização de moeda a que a China, como outros países com economias predominantemente exportadoras recorrem, consistem em mecanismos que transferem riqueza dos trabalhadores assalariados para os proprietários. O pendor mercantilista destas economias é muito claro, sendo que entre elas se conta também a Alemanha de 2000 em diante, pela vertente de desvalorização indirecta da moeda através da Zona Euro, e pelas políticas de baixos salários, que permitiram margens de lucro progressivamente maiores, ainda que acarretando consigo custos sociais que poderão explicar a ascensão dos discursos extremistas no seu território.

Ao analisar a estrutura do PIB chinês, constatamos que, ao dividir em 3 componentes, sendo elas Consumo, Investimento e Exportações, a proporção que o consumo representa, consumo que se reporta aos gastos dos agregados familiares, é muito baixa. Torna-se necessário explorar as condições que seriam precisas para que a China consiga o seu objectivo de construir uma economia sustentável e competitiva a nível da procura interna, sabendo que a predominância do factor Investimento está dependente da capacidade de o estado se continuar a endividar para financiar grandes projectos de infraestrutura e apoios financeiros do lado da procura, como já vimos, e que, consequência disto, a sustentabilidade do sistema está actualmente dependente do crescimento das exportações, de tal forma que possa justificar tais gastos na geração de excedente produtivo.

Esta exploração será abordada na parte II.

[1] Citação: “No The Times, comecei rapidamente a apoiar a alliança russa; e quando isto foi confirmado pela resistência russa e pela vitória russa, reavivou a minha fé inicial na Revolução Russa como um grande feito e um ponto de viragem histórico. (…) Com os anos 30 em retrospectiva, senti que a minha preocupação com as purgas e brutalidades do Estalinismo tinha distorcido a minha perspectiva.” (p. xx)

[2] Citação: “Lembro-me claramente que recusei ficar indignado com a re-ocupação da Renânia em 1936 (…). Isto foi uma rectificação de uma velha injustiça, e as Potências Ocidentais estavam a pedir aquilo que receberam.” (p. xix)

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